Ao longo das nossas vidas,
mormente para quem ainda anda neste mundo, felizmente, há mais de sete décadas,
como eu, tivemos o prazer de conviver momentos inolvidáveis nos cafés de
referência. Esses lugares das facetas de cada um de nós.
Por todo o país, esses
estabelecimentos eram testemunho duma convivência salutar. O ponto de encontro
para os negócios da época, com ou sem as facilidades de hoje. Da procura de alguém que servisse para
apadrinhar um novo emprego. Mas também em momentos de cultura, ainda no
desconhecimento das novas tecnologias. Nem sequer existia o telemóvel. Muitas
vezes era o telefone do café o ponto chave de contactar alguém que
habitualmente os frequentava. O recado deixado ao dedicado empregado dava
ensejo de tranquilidade a quem se procurava.
Mas também ponto de reunião de
uma determinada classe. Eram os que não davam louvas aos tempos do Estado Novo.
Obviamente atentos, tanto quanto possível acautelando as suas conversas. Ali
podia estar um pide disfarçado que tapava a cara com a gola do seu sobretudo.
Os estudantes davam uma
escapadela para uma disputa entre os bilhares. E não só. Também os “Leões da
Serra”, jogadores de futebol da I Divisão.
Os menos abastados, esses,
coitados, davam azo à sua camuflada revolta. A sua permanência nas muitas
tabernas de então, ou cafés menos frequentados. Evitavam encontrar-se com os
patrões. Viam-se também nos bares das muitas coletividades de bairro
existentes.
E, na tranquilidade da leitura do
jornal, de dimensões exageradas, liam-se os artigos do enorme Diário de Notícias ou d’A Bola, que contrastava, em tamanho, por exemplo, com o Diário Popular ou o Record.
O Montalto, na Covilhã, que há muitos anos encerrou as suas portas, era
conhecido como o café dos industriais. Era ainda o café da alta e da média
burguesia, onde pequenos grupos se formavam em função dos negócios e interesses
como descreve José António Pinho num dos seus livros. Aqui se bebia a bica,
confecionada com os melhores lotes de café da Cafeeira, e que custava o dobro.
Mas também foi lugar de encontro dos descontentes do antigo regime,
como aconteceu aquando da visita do General Humberto Delgado, em campanha
eleitoral, que deixou o Montalto a rebentar pelas costuras, tão repleto que
estava de gentes em vibrante entusiasmo. Estávamos em 1958.
Mas se acima falámos de cultura, outros cafés covilhanenses foram de
memórias como o extinto Café Leitão, onde o escritor Ferreira de Castro
escreveu o romance sobre os lanifícios – A Lã e a Neve.
Passando da zona serrana para a alentejana, aí vamos deparar com o
mítico Café Arcada, também ele rico de história. Era de facto o café da
tradição. Abriu em 14 de fevereiro de 1942, tendo sido considerado um dos
melhores do País, com mais de 100 mesas.
Nos primeiros tempos o Arcada foi frequentado pela burguesia local,
pequenos grupos de intelectuais, gente do reviralho, profissionais liberais e
estudantes liceais. Os latifundiários e os agricultores frequentavam o Café
Camões, à Porta Nova. Mas com a perda de centralidade desta zona e o acrescido
ganho de importância da Praça do Giraldo, estes passaram a tomar de assalto o
Arcada às terças-feiras, dia do mercado semanal. Em plena Praça e no interior
do café se discutiam e apalavravam negócios, tendo ali chegado a funcionar uma
informal bolsa de gado. No seu romance Aparição o escritor Vergílio
Ferreira relata bem o ambiente do Café Arcada quando nele entrou pela primeira
vez em 1946, colocando a sua visão na boca do protagonista Alberto Soares. “….
Acabámos por marcar o encontro para o dia seguinte no Arcada sem que o Moura se
lembrasse de que era uma terça-feira, ou seja dia de mercado. Com efeito, ao
entrar no café, após o almoço, tive a surpresa de ver aquele vasto túnel
apinhado de gente. O corredor atravancava-se de negociantes, porque era ali,
entre bebidas, que se realizava o mercado da semana. A terça-feira era o ‘dia
de porcos’”, como soube mais tarde que lhe chamavam.
O escritor ficou aliás com uma marca indelével do Arcada, pois foi ali
que o seu colega e padrinho do casamento, Alberto Miranda, lhe pagou a boda, da
qual consistiu dum galão a cada um e bolos, conforme revelou em “Conta-Corrente
2”.
Entretanto, com o passar do tempo, aos lavradores veio juntar-se uma
corte de gente ligada ao mundo dos touros e ao marialvismo rural, composto por
ganadeiros, toureiros e aprendizes, moços de forcados, apoderados, equitadores,
aficionados e professores e alunos da Escola de Regentes Agrícolas.
Com a subida do Lusitano de Évora à I Divisão em 1952 a fama do café
chegou a Lisboa. Os adeptos do Sporting, do Benfica e do Belenenses, do Vitória
de Setúbal e do Barreirense, que aos milhares se deslocavam a Évora para apoiar
as suas equipas, conheceram-no, apreciaram-no e dele fizeram grande propaganda
na capital e arredores.
A Revolução de Abril acentuou-lhe a decadência retirando-lhe a antiga
frequência dos terratenentes e seareiros, engolidos na voragem do PREC.
Esta situação durou alguns anos e causou o desgosto de quem por ali
passava na época áurea. Mas mesmo ao findar do século passado a Cervejaria
Trindade resolveu ocupar o espaço, remodelá-lo por completo, e manter-lhe
associado o nome de Café Arcada.
(In "O Olhanense" , de 01-05-2022)
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