4 de maio de 2022

CAFÉS MÍTICOS O CAFÉ MONTALTO, NA COVILHÃ, E O CAFÉ ARCADA, EM ÉVORA

 

Ao longo das nossas vidas, mormente para quem ainda anda neste mundo, felizmente, há mais de sete décadas, como eu, tivemos o prazer de conviver momentos inolvidáveis nos cafés de referência. Esses lugares das facetas de cada um de nós.

Por todo o país, esses estabelecimentos eram testemunho duma convivência salutar. O ponto de encontro para os negócios da época, com ou sem as facilidades de hoje.  Da procura de alguém que servisse para apadrinhar um novo emprego. Mas também em momentos de cultura, ainda no desconhecimento das novas tecnologias. Nem sequer existia o telemóvel. Muitas vezes era o telefone do café o ponto chave de contactar alguém que habitualmente os frequentava. O recado deixado ao dedicado empregado dava ensejo de tranquilidade a quem se procurava.

Mas também ponto de reunião de uma determinada classe. Eram os que não davam louvas aos tempos do Estado Novo. Obviamente atentos, tanto quanto possível acautelando as suas conversas. Ali podia estar um pide disfarçado que tapava a cara com a gola do seu sobretudo.

Os estudantes davam uma escapadela para uma disputa entre os bilhares. E não só. Também os “Leões da Serra”, jogadores de futebol da I Divisão.

Os menos abastados, esses, coitados, davam azo à sua camuflada revolta. A sua permanência nas muitas tabernas de então, ou cafés menos frequentados. Evitavam encontrar-se com os patrões. Viam-se também nos bares das muitas coletividades de bairro existentes.

E, na tranquilidade da leitura do jornal, de dimensões exageradas, liam-se os artigos do enorme Diário de Notícias ou d’A Bola, que contrastava, em tamanho, por exemplo, com o Diário Popular ou o Record.

O Montalto, na Covilhã, que há muitos anos encerrou as suas portas, era conhecido como o café dos industriais. Era ainda o café da alta e da média burguesia, onde pequenos grupos se formavam em função dos negócios e interesses como descreve José António Pinho num dos seus livros. Aqui se bebia a bica, confecionada com os melhores lotes de café da Cafeeira, e que custava o dobro.

Mas também foi lugar de encontro dos descontentes do antigo regime, como aconteceu aquando da visita do General Humberto Delgado, em campanha eleitoral, que deixou o Montalto a rebentar pelas costuras, tão repleto que estava de gentes em vibrante entusiasmo. Estávamos em 1958.

Mas se acima falámos de cultura, outros cafés covilhanenses foram de memórias como o extinto Café Leitão, onde o escritor Ferreira de Castro escreveu o romance sobre os lanifícios – A Lã e a Neve.

Passando da zona serrana para a alentejana, aí vamos deparar com o mítico Café Arcada, também ele rico de história. Era de facto o café da tradição. Abriu em 14 de fevereiro de 1942, tendo sido considerado um dos melhores do País, com mais de 100 mesas.

Nos primeiros tempos o Arcada foi frequentado pela burguesia local, pequenos grupos de intelectuais, gente do reviralho, profissionais liberais e estudantes liceais. Os latifundiários e os agricultores frequentavam o Café Camões, à Porta Nova. Mas com a perda de centralidade desta zona e o acrescido ganho de importância da Praça do Giraldo, estes passaram a tomar de assalto o Arcada às terças-feiras, dia do mercado semanal. Em plena Praça e no interior do café se discutiam e apalavravam negócios, tendo ali chegado a funcionar uma informal bolsa de gado. No seu romance Aparição o escritor Vergílio Ferreira relata bem o ambiente do Café Arcada quando nele entrou pela primeira vez em 1946, colocando a sua visão na boca do protagonista Alberto Soares. “…. Acabámos por marcar o encontro para o dia seguinte no Arcada sem que o Moura se lembrasse de que era uma terça-feira, ou seja dia de mercado. Com efeito, ao entrar no café, após o almoço, tive a surpresa de ver aquele vasto túnel apinhado de gente. O corredor atravancava-se de negociantes, porque era ali, entre bebidas, que se realizava o mercado da semana. A terça-feira era o ‘dia de porcos’”, como soube mais tarde que lhe chamavam.

O escritor ficou aliás com uma marca indelével do Arcada, pois foi ali que o seu colega e padrinho do casamento, Alberto Miranda, lhe pagou a boda, da qual consistiu dum galão a cada um e bolos, conforme revelou em “Conta-Corrente 2”.

Entretanto, com o passar do tempo, aos lavradores veio juntar-se uma corte de gente ligada ao mundo dos touros e ao marialvismo rural, composto por ganadeiros, toureiros e aprendizes, moços de forcados, apoderados, equitadores, aficionados e professores e alunos da Escola de Regentes Agrícolas.

Com a subida do Lusitano de Évora à I Divisão em 1952 a fama do café chegou a Lisboa. Os adeptos do Sporting, do Benfica e do Belenenses, do Vitória de Setúbal e do Barreirense, que aos milhares se deslocavam a Évora para apoiar as suas equipas, conheceram-no, apreciaram-no e dele fizeram grande propaganda na capital e arredores.

A Revolução de Abril acentuou-lhe a decadência retirando-lhe a antiga frequência dos terratenentes e seareiros, engolidos na voragem do PREC.

Esta situação durou alguns anos e causou o desgosto de quem por ali passava na época áurea. Mas mesmo ao findar do século passado a Cervejaria Trindade resolveu ocupar o espaço, remodelá-lo por completo, e manter-lhe associado o nome de Café Arcada.

(In "O Olhanense" , de 01-05-2022)

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