29 de abril de 2025

OS LUTOS INACABADOS DO IMPÉRIO



 Depois da entrevista com o José António Chorão, na rubrica “Conte-nos a sua História”, veio-me à memória escrever sobre um tema que por várias vezes me ocorreu: a grande dor de famílias que viram perder os seus entes queridos sem complacência dos senhores do poder de então. 
 Embora não seja habitual, insiro neste espaço duas fotos alusivas, onde se veem dois dos seus camaradas em Nancarati, Moçambique, sendo que o da direita é o referido naquela entrevista e que faleceu logo na primeira picada, porquanto ia à frente e foi fortemente alvejado pelos guerrilheiros da Frelimo.
Durante a Guerra do Ultramar (1961-1974), muitos militares portugueses perderam a vida, e nem todos puderam ser identificados ou recuperados, especialmente como quedas ao mar ou em combates intensos.
Um exemplo trágico é o incidente com o navio mercante “Save” em 7 de julho de 1961, no litoral marítimo a sul de Quelimane. O navio sofreu um incêndio a bordo, seguido de explosões devido ao material de guerra transportado, resultando em 237 vítimas entre passageiros, militares e tripulantes. Entre os militares portugueses mortos ou desaparecidos contaram-se 80. Devido à gravidade do acidente e às condições do mar, muitos corpos não puderam ser recuperados ou identificados.
Além deste episódio, houve outras situações durante o conflito em que os militares desapareceram em combate ou em acidentes, e os seus corpos nunca foram encontrados ou identificados, causando um impacto profundo nas famílias e na sociedade portuguesa.
A memória destes combatentes é mantida viva através de diversas iniciativas e homenagens, reconhecendo o sacrifício daqueles que serviram durante a Guerra do Ultramar.
Durante os primeiros seis anos da guerra colonial, o Estado só pagava o regresso de militares vivos. Permanecem até hoje enterrados em África (Angola, Guiné-Bissau e Moçambique) cerca de 1500 militares portugueses, de acordo com o levantamento feito pela Liga dos Combatentes. São soldados e cabos, há alguns sargentos e muito poucos oficiais. Muitas famílias já se esqueceram algumas ainda não.  
Catarina Gomes, in Público, refere que a camponesa alentejana Maria Florinda da Luz, que não sabia escrever, ajudou a mudar um pormenor da história. Tinha sido informada por telegrama que o filho tinha morrido na guerra em Moçambique a 19 de janeiro de 1967. Se o quisesse trazer, teria de pagar 12 mil escudos, o que equivaleria, aos preços de hoje (de acordo com o conversor da Pordata), a cerca de 4 mil euros. Era impossível, mas a mãe do soldado sentiu que, à sua maneira, tinha de fazer alguma coisa. Foi ter com o presidente da Junta para a ajudar a redigir a carta, chorando convulsivamente. Disse-lhe tudo o que sentia, o que tinha no coração, e ele lá organizou e arrumou as frases à sua maneira, que assim seguiram, em tom submisso, para o ministro da Defesa, uma ousadia nos tempos que corriam.
“Pedia a V.ª Ex.ª, pela sua saúde, já que não tive a sorte de trazerem o meu filho vivo, peço-lhe que mo mandem mesmo morto. Para eu o adorar e rezar ao pé daquele bom querido filho. Peço imensa desculpa a Vª. Ex.ª destas minhas tristes palavras, mas a dor é tão grande que não sei onde hei de respirar. O nome do meu filho é Francisco da Luz Carloto”.
A transladação era incomportável para a maioria das famílias, era uma sociedade ruralizada, com hierarquias, com uma desigualdade mais nítida e aceite do que é hoje.
A não vinda dos corpos era uma das formas que assumia a pouca visibilidade da morte na guerra, segundo lembra Carlos Matos Gomes. Por exemplo, se morriam vários militares numa operação, os jornais tinham instruções para diluírem as mortes por vários dias, em pequenas notícias a uma coluna, publicadas em páginas interiores. Os mortos que chegavam vinham em navios de transporte, dentro de vulgares caixotes de madeira e as urnas eram desembarcadas longe da vista. Mesmo os feridos chegavam durante a noite. A política de transladações permaneceu inalterada e sem grande polémica até à carta vinda da aldeia alentejana do concelho de Nisa, Tolosa. A camponesa passou a saber que o Estado tinha passado a assegurar as transladações depois da sua iniciativa, através da carta de março de 1967, embora as famílias tivessem ainda algumas despesas, por exemplo, pagar o caixão de chumbo e o transporte do hospital militar até ao cemitério da terra natal.
No entanto, o problema dos militares mortos que ficaram em África não teve só que ver com os custos. Muitos militares não foram transladados para Portugal porque permanecem até hoje em lugar incerto (200) ou continuam desaparecidos (267), segundo informação do presidente da Liga dos Combatentes, tenente-general Chito Rodrigues. São casos de militares enterrados em situação de combate no local da morte, afogamentos, corpos enterrados em cemitérios improvisados das próprias unidades, que se encontram dispersos pelos territórios em lugares que hoje são mato e capim.
A Liga dos Combatentes deu início à chamada Operação Conservação de Memórias, levada a cabo em março de 2008, com a ida à Guiné de Chito Rodrigues, tendo como objetivo “dignificar” os restos mortais de militares dispersos por vários locais e transferi-los para cemitérios centrais. O objetivo nunca foi assegurar a transladação para Portugal, mas localizados os militares, podiam ajudar as famílias que o quisessem fazer. A Liga dos Combatentes tem um protocolo com a TAP que assegura gratuitamente às famílias a viagem do cemitério da capital do país africano para Lisboa, mas as restantes despesas são a cargo da família, e ainda podem ser bastantes. 
Chito Rodrigues diz que há várias razões para serem tão poucas famílias a pedir a transladação. Uma delas podem ser os custos envolvidos, depois, a grande maioria dos militares não tinham filhos, os familiares que ficam são irmãos, sobrinhos ou familiares mais distantes e, claro, há o tempo, já passaram 40, 50 anos sobre estas mortes.
O historiador Miguel Bandeira Jerónimo, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, diz que esta transladação de um pai, “ajuda-nos a perceber a natureza do regime, a escassez de informação, o desrespeito que o regime tinha pela vida humana”. 
João de Jesus Nunes
jjnunes6200@gmail.com  
(In “O Combatente da Estrela”, nº. 138-abril/2025)

Sem comentários: