Semana de Campo - Tavira (04-07-1968)
Corria o mês de Outubro do ano da graça de mil novecentos e cinquenta e oito quando entrei, pela primeira vez, como muitos outros rapazes e raparigas, na Escola Industrial e Comercial Campos Melo, como estudante, então a iniciar o Ciclo Preparatório. Éramos muitos Colegas.
Depois, na continuidade, os respectivos cursos: Geral do Comércio, Debuxo, Tintureiro Acabador, Electricista, entre outros, sem esquecer o da Formação Feminina.
Já conhecia a Escola sobejamente por fora. Assisti ainda ao final da construção do segundo pavilhão, e à respectiva inauguração, edifício então destinado aos cursos industriais. Morava paredes-meias com os muros da Escola.
No entanto, antes de continuar a minha vida de estudante, pós-prímária, efectuei ali o exame de admissão ao ensino secundário, que era obrigatório naqueles tempos de outrora, já lá vai mais de meio século – mais de metade da vida de uma pessoa.
Os rapazes não se podiam misturar com as raparigas, pelo que havia um terraço destinado às mesmas.
Muito haveria que contar, por cada um de nós, tanto de bom, como de alguma contrariedade. Foram tempos inesquecíveis. Memorizam-se a vertente do estudo, os Colegas, os Professores, as amizades, passageiras umas, mas duradouras outras, que se prolongaram pelos tempos fora.
Nesta efemeridade da vida, ficou a nostalgia do jogo da bola, no campo de futebol triangular, areado sob alcatrão, que dava uma ajuda aos sapateiros; das traquinices com os Colegas, os Contínuos e os Professores, para além da vida alegre com as raparigas, Colegas do mesmo espaço estudantil.
Recorda-se também a rapaziada da Escola, que fazia grupos junto ao portão principal, tapando quase o acesso para a casa do ferrador, aguardando a vinda e/ou saída dos Colegas e Professores, no início e termo das aulas. Era um formigueiro de juventude, dispersando-se pela Rua Vasco da Gama, no sentido do Serrado, ou em direcção à Avenida Salazar, hoje Av. 25 de Abril.
Mas foi também com os nossos Professores que tivemos partes interessantes da vida académica.
Para preâmbulo de alguns episódios que vou contar, quero deixar o registo de ter o privilégio de ainda poder contar com amigos desse tempo de Escola, que, desde sempre, com mais ou menos regularidade, temos vindo a falar dessa mesma Escola, e, obviamente, das suas figuras, algumas delas que nos deixaram marcas indeléveis para reforço da formação da nossa personalidade,
Conversar com regularidade, pela voz dos meios tecnológicos hoje colocados à disposição de qualquer humano, e transportando as memórias sem qualquer amnésia, com grande entusiasmo, para os tempos de hoje, é revelador do que foi e é a amizade desses tempos.
A partida feita numa aula da disciplina de Noções de Comércio, ao professor Guedes da Costa, do Porto, que tinha um certo charme, e costumava tirar os maços de tabaco aos alunos que os levavam para a aula, considerando uma certa indisciplina, levou a que o Nuno Alegria Ribeiro – um dos lesados – tivesse uma ideia genial.
Na aula seguinte, antes de entramos, contou-nos a partida que iria fazer. Levava um maço de tabaco cheio, mas de palha, com o mesmo peso, muito bem cintado, devidamente disfarçado. Vai de provocar a evidência do maço de tabaco dentro da aula. O professor, num gesto enérgico, manda recolher o maço e colocá-lo em cima da secretária que, depois, mete na gaveta. Na aula seguinte constatámos, pelo sorriso do professor, que ele reconheceu ter sido enganado, quando um dos alunos mais atrevidos se lhe dirigiu e perguntou se lhe podia dar o maço de tabaco.
Do amigo Fernando Dias Pedrosa Gonçalves, antigo Colega na Escola Campos Melo, vai um respigo de muitas das suas missivas sobre a Escola, e esta é de Junho de 2005: «“Os três Padres”. “Padre Nabais – Foi nosso professor de Canto Coral. Baixo, sobre o forte cabelo à escovinha, (…) quando não estávamos atentos acordava-nos com um toque subtil através dos nós dos dedos, com a mão fechada, nas nossas cabecinhas.
Padre Morgadinho – Professor de Religião e Moral, abusávamos da sua bondade, e a aula de Religião e Moral era sempre mal amada e ele sabia disso” (…).
Padre Acácio – Professor de Religião e Moral e Assistente Religioso da Mocidade Portuguesa. (…) Tinha um Opel Kapitan e andava sempre atrasado. (…) Como era costume, nós estávamos junto do portão e eis que chega o padre em cima da hora. Havia uma brecha entre dois automóveis já estacionados mas, para meter o Opel no espaço vago iria levar algum tempo, aumentando o atraso. Não perdeu tempo e enfiou o carro de frente, deixando a traseira completamente fora do alinhamento. – “Eu vou lá acima e já venho arrumar melhor” – disse-nos, em jeito de desculpa pela transgressão que estávamos a testemunhar. Alguém se levantou e sugeriu: – “E se levantássemos em peso a traseira do carro e a encostássemos de forma a ficar correctamente estacionado?” – Uma meia dúzia de nós elevou, a pulso, a traseira do Opel e arrastou-a até bem junto do muro. Quando o Padre Acácio veio para melhor estacionar o carro, já estava. Não presenciámos a reacção mas o Sr. Pereira Nina, chefe dos contínuos, disse-nos ter visto o padre a dar voltas ao carro e a falar sozinho” .»
«“Da Dr.ª Fernanda Bandeira lembro-me da sua exigência quando corrigia as nossas redacções/composições. Era rigorosa na análise do uso do “que”, da vírgula e no tamanho dos períodos literários. Não facilitava muito na gramática e era implacável na conjugação dos verbos. O pouco que sei de Português muito o devo a ela.
A Dr.ª Maria do Céu Proença tinha uma forma diferente de lidar connosco. Era mais chegada, gostava de ouvir e quando não gostava fazia de conta que quem falou nada disse. Quando íamos comprar livros para a nossa famosa biblioteca eu sugeria livros um pouco avançados e quando se virava para mim dizia: “Esse não, Pedrosa!” Eu partia para outro e não obtinha nem gesto nem resposta, só um olhar e a pergunta: “Trouxeste dinheiro?” Naquele dia as compras estavam terminadas.”»
«“Andias foi professor de Cálculo Comercial e tivemos um problema na turma, pois ele explicava a matéria de costas para os alunos enquanto resolvia um problema como exemplo e sempre com a mão esquerda no bolso. Era curto nas palavras, rápido nas soluções e quando se virava, a pergunta sacramental: “Percebido?”. O Zé Carlos Marques foi um dos mais revoltados, pois não conseguia perceber patavina e na aula do Dr. Oliveira Dias, que era o Director de Turma, o assunto foi falado e na aula seguinte o homem justificou-se que ao fazer a pergunta, como ninguém se manifestava, avançava na matéria. Quanto à mão no bolso, tinha um defeito na mão e era uma forma de esconder o aleijão”».
«“O Prof. Policarpo era professor de Ginástica. Foi um caso especial por três razões: 1 – Apresentou-se na Escola com um BMW que só tinha uma porta e era toda a frente do carro que abria para que o condutor entrasse. 2 – Foi dos primeiros professores de ginástica licenciados pelo INEF, daí que aquando da sua apresentação à malta, o engenheiro, Director da Escola, tenha dito que na Escola tínhamos de facto um professor de ginástica, doutor. “Podem chamar-lhe doutor à vontade porque é mesmo”. 3 – O eng.º conseguiu convencê-lo a dar uma ajuda na Mocidade Portuguesa. Aceitou e teve um baptismo de fogo. Fizemos um acampamento e o almoço de Domingo foi arroz de chouriço com nabiças confeccionadas pelo Zé Rodrigues. O prof. foi convidado, apareceu para o almoço e foi servido o arroz da ordem. O homem quando viu do que se tratava ficou mais sério que o costume, mas lá foi petiscando aqui e ali e nós apercebemo-nos de um certo mal-estar. “Então o arroz não estava bom? O Sr. quase só provou”. “– Vocês têm razão mas eu não suporto chouriço e para não ficar mal diante dos miúdos obriguei-me a petiscar alguma coisa”. »
O Amigo Pedrosa, como com muitos dos Colegas que passaram pela Escola Campos Melo, pelo Liceu e pelo Colégio Moderno, cruzaram-se no serviço militar, nas diversas unidades militares do Continente, e, depois, nas Províncias Ultramarinas.
Nos quartéis por onde passei, tive como Colegas, entre outros, o Muxagata, Cunha Rebelo, Berrincha, Agostinho Paiva, Caria (de Alçaria), Luís Morais Fiadeiro, José António Bichinho, Luís Morais, José Marques Abrantes, Eduardo Prata, Bicho Nogueira, Nuno Rato (do Teixoso).
O Pedrosa foi encontrar em Angola, o Franco, o Sampaio, o Braçais e o Ferraz, entre outros. Como todos nós, tivemos vários episódios que encheriam todas as páginas desta revista.
Entre outras, havia o desenrascar de assuntos em situações melindrosas. Por exemplo, o Sampaio lá desenrascou um colega do Pedrosa que lhe faltavam lençóis para os maçaricos que vinham da Metrópole. Como não conseguia, resolveu o problema retirando as mortalhas de caixões que de destinavam aos militares que vinham a falecer. –“ Não são lençóis, são mortalhas que é a mesma coisa” – disse o Sampaio. E também o desenrasque do “cunhete” que era um caixote de munições que o Pedrosa necessitava para desenrascar uma situação melindrosa de falta quando se preparavam para regressar a Portugal.
Mas também de um antigo Colega da Escola, agora encontrado também em serviço militar em Angola – Pedro Pereira Pacheco: «“Era da Panasqueira e vinha no célebre comboio dos estudantes. Pouco expansivo e dado à pacatez. Numa deslocação em serviço, com o jeep (…) saí directo para a Engenharia a pensar como havia de dar a volta ao assunto. Já tinha ouvido falar que havia lá pessoal da Covilhã mas não sabia quem, nem tinha confirmação. Na Porta d’Armas logo perguntei se havia ao serviço alguém da Covilhã, que sim, “havia um Furriel que era desses lados. Sabem o nome?” – “Pacheco? Pedro Pereira Pacheco?” – “Sim” – , confirmou o Sargento da Guarda. – “Precisava de falar com ele?” O Furriel que estava de Sargento da Guarda mandou um militar acompanhar-me. Num dos pavilhões lá estava o homem. Quando me viu ficou surpreso e rapidamente aí estava o abraço da ordem e a pergunta sacramental. – “Precisas de alguma coisa?” (…) E lá desenrascou os sacos de areia. Março de 1970 – A Comissão no Ultramar estava no fim. (…) Eu e o meu companheiro de quarto ainda não tínhamos conseguido arranjar quem nos fizesse o caixote com as medidas exigidas para nele encaixotar todos os nossos haveres. (…) Havia reboliço. Qualquer coisa falhou. (…) Acabaram-se os pregos e agora queremos pregar os caixotes e não temos com quê. (…) “Meu Furriel, só Você nos pode safar. (…) Você arranja?” “Vou tentar. Preciso de papel a pedir a viatura”. (…) O Pacheco torceu o nariz. (…) “Toma lá e não digas a ninguém onde conseguiste o material, senão quem fica à pega sou eu. Tem pregos iguais, maiores e mais pequenos que aquele que me deste”. As despedidas foram rápidas e no regresso à Companhia lá estava o militar à minha espera. (…) As minhas preocupações terminaram. O caixote apareceu, as minhas malas foram devidamente embaladas, o meu nome pintado e entrou no porão na terceira lingada. Obrigado Pacheco!”»
E, no dia 18 de Abril de 1970, este meu amigo Pedrosa chegava a Lisboa, regressado de Luanda – Angola. – “Logo ao nascer do dia fui acordado para que pudesse ver a aproximação do barco a Lisboa. Foi bonito de se ver o Cristo Rei, e a pouco e pouco ficar desenhado no nosso horizonte visual. Depois o atracar ao cais e a procura de um rosto conhecido. E quem estava de braços no ar a acenar para o barco? O Chorão – o nosso amigo Chorão lá estava”.
Pois bem, eu nesta data ainda não tinha terminado o serviço militar, e não fui mobilizado para o Ultramar – aturei 42 meses no Continente – e, tal como o amigo Pedrosa, fui Furriel Miliciano, estava no Regimento de Infantaria 12, na Guarda, depois de ter vindo do Regimento de Artilharia Ligeira 4, em Leiria, onde estive um ano colocado. Quando ele regressou do Ultramar estava eu a 12 dias de me casar. O amigo Pedrosa casaria no Porto, com a Ana Maria, daí por 8 anos.
O Fernando Pedrosa teve uma breve passagem da sua vida profissional comigo, antes do serviço militar, na Câmara Municipal da Covilhã e, então, recordou o Napoleão. «“Horto municipal – Aqui eram semeadas e plantadas todas as flores, árvores e plantas ornamentais que embelezavam os canteiros e jardins municipais. Alguém chegou à conclusão que se gastava demasiado dinheiro com as flores, os vasos e tudo o mais. Era necessário que do horto municipal nascesse alguma receita. O Napoleão foi chamado. Naquele momento ficou sem palavras. – “Vamos vender flores a quem?” Napoleão pensou e descobriu, “Faz-se uma exposição venda de flores criadas no horto municipal”. O local seria a entrada nobre da Câmara que por norma estava fechada. Houve resistências. O Napoleão ornamentou toda aquela entrada e escadarias com flores diversas. Todos os dias lá estava a entregar a receita na tesouraria. Foi um êxito”.»
O Pedrosa acabaria por sair da Covilhã em Setembro de 1966, regressando somente, por força dum convite para o lançamento de uma monografia que publiquei e foi apresentada na Câmara Municipal, em 2004, volvidos 38 anos.
Foram memórias dos tempos da nossa Escola Campos Melo e repercussões verificadas no curso da vida de cada um de nós.
JOÃO DE JESUS NUNES
(Antigo Aluno do Curso Geral do Comércio)
Saiu na Revista “ECOS DA APAE”, N.º 18, de Maio de 2010.
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