13 de julho de 2017

A SENTINELA DORMIA

O país tem estado traumatizado com a violência sentida pelos incêndios que deflagraram no dia 17 de junho, principalmente o grande incêndio, no distrito de Leiria, com início em Pedrógão Grande, que se estendeu a Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos, chegando ainda aos distritos de Castelo Branco, através da Sertã, e de Coimbra, pela Pampilhosa da Serra. Em Góis, também no distrito de Coimbra, ainda atingiu Arganil.
Não bastasse este funesto acontecimento; para além de já terem surgido outros anteriores, nomeadamente o do dia 5 do mesmo mês, num curto espaço de 15 dias, ocorrido num prédio da Urbanização Ponte Pedra, em Matosinhos; ainda haveria de surgir outro infeliz acontecimento, deixando em grande perplexidade a segurança do nosso país. Reporto-me obviamente ao grande furto de material de guerra verificado em Tancos.
O Exército anunciou então que no dia 28 de junho, no final do dia, detetou a violação dos perímetros de segurança dos Paióis Nacionais de Tancos e o arrombamento de dois “paiolins”, tendo desaparecido granadas de mão ofensivas e munições de calibre nove milímetros. Mais tarde viria a acrescentar que entre o material roubado estavam “granadas foguete anticarro”, granadas de gás lacrimogéneo e explosivos, não divulgando quantidades.
O chefe do Estado-Maior do Exército reconheceu que quem roubou material de guerra do quartel de Tancos tinha “conhecimento do conteúdo dos paióis” e admitiu a possibilidade de fuga de informação.
No Público do dia 2 de julho, referia-se em título de grandes parangonas: “Tancos esteve 20 horas sem ronda de vigilância na noite do assalto”.
Portugal que se encontra numa trajetória interessante de recuperação da economia, com fortes índices de confiança do povo português, o mesmo já não se pode dizer quanto à sua segurança.
Ainda recentemente escrevi um artigo a propósito do nosso país ter sido considerado um dos mais pacíficos do mundo segundo os dados da Global Peace Index 2017. Mas, afinal, quanto a segurança, em que nos ficamos? A resposta não pode ser senão esta: Preocupação! Muita preocupação!
Quem nos pode defender? Quer por atos da natureza, ou de mãos criminosas, quer por furtos em alta escala como estes! Os factos já indiciam como que um conluio com os criminosos, pois se fosse um roubo até parecia mal que as nossas tropas se deixassem levar com facilidade, o que eu não acredito. É que furto não é a mesma coisa que roubo.
Ao escrever este texto soltou-se do meu pensamento algo ocorrido comigo quando cumpria serviço militar obrigatório no Regimento de Artilharia Ligeira (RAL 4), em Leiria, isto no que concerne à segurança.
Corria o ano da graça de mil novecentos e sessenta e nove e, no serviço de Sargento de Dia, cabia-nos também a obrigação de fazer a ronda noturna a uma zona de paióis e guarda de outro material, incluindo de velhos obuses, situada fora do quartel RAL4, a uma distância próxima de um quilómetro. Por sinal, era rara a vez que me calhava a ronda noturna dentro das primeiras horas pós meia noite. Num certo dia daquele verão vim a ser “sortudo” com uma ronda das três às quatro da manhã.
Ao aproximar-me do local objeto da ronda, a sentinela não dava sinal de vida. Fui-me aproximando, pela zona escura, já receoso não estivesse para me pregar alguma partida, e, à minha voz de “Sargento de Ronda!”, não surgiu a respetiva resposta, através da “senha”. Continuei a caminhar, cada vez mais devagar, até que lobriguei, mais adiante, no chão, um militar deitado, de barrete n.º 3 verde e farda de trabalho. Na aproximação, comecei também a ouvir um ressonar… Já nem foi preciso dar resposta com a “contrassenha”.
Este gajo está a dormir, porra!
Agarrei na G3 que tinha ao lado, e deixei-lhe ficar o capacete; dei-lhe dois pontapés nas botas, e, nada! Ressonava… Talvez estivesse a passar pelo primeiro sono, não pelas brasas… que essas se encontrariam logo pela manhã nas praias ali perto, de São Pedro de Moel ou na Praia da Vieira…
Com a pistola “Parabellum” à cintura e a G3 na mão ainda me deu oportunidade de ir “incomodar” os soldados de reserva que se encontravam deitados nas camas de ferro, em beliche, na caserna do reduto. Também dormiam. Acendi-lhes a luz, até que um deles se sentou na cama, e a seguir outro: “Olha, é o nosso Sargento de Ronda!...”
- Está tudo bem, rapaziada?...
- Tudo bem!
Como o sono não lhes dava para ver que eu tinha na mão também uma G3, fiz, propositadamente, (para que fossem acordar o seu camarada que dormia no chão, naquele “rigor e sentido” de estar num serviço de sentinela, e para evitar uma “porrada” à mesma, certamente a caminho da prisão), por mostrar e informar os seus camaradas que ia para o RAL4 com a G3 para entregar ao “Oficial de Dia”.
Volto a passar pela sentinela que continuava no seu sono profundo, quando, uns metros já distante, a mesma vem a correr atrás de mim, suplicando que lhe entregasse a arma e pedindo desculpa.
Obviamente que, no dia seguinte, não registei nada no relatório do serviço; tão só contei aos meus camaradas, com a condição de sigilar o acontecido, mas, à hora do almoço, na Messe de Sargentos, um ou outro levantava um pouco mais a voz sobre o assunto que, de imediato, com a forma gestual de nada contarem, se dissipou o assunto.
Naqueles tempos, o serviço militar era por obrigação; os empregos e vidas eram altamente prejudicados pelo tempo passado na tropa, com a agravante de, a maioria, ser obrigada ainda a ir para as guerras do Ultramar.
Hoje, não há serviço militar obrigatório. Por isso, muito mais a obrigação de ter que haver um sentido de maior responsabilidade.
Só que, se naquela altura a segurança poderia ter sido posta em causa por um simples ser humano – a sentinela –, naquele pequeno mundo, contudo não deixou de haver uma ronda de vigilância que detetou o problema fortuito, e acabou por o resolver.
Muito haveria que comentar, a propósito da (in)segurança nos dias de hoje, onde a corrupção emerge apesar das tentativas de dissimulação.
Muita tinta ainda se irá gastar com o recente assalto aos Paióis de Tancos.

(In "O Combatente da Estrela", n.º 107, julho a setembro 2017)





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