10 de outubro de 2017

AQUELE AGOSTO DE 1968 NA COVILHÃ

Estava longe de pensar o que se preparava de agitação na cidade dos lanifícios. Encontrava-me a caminho do términus do 2º. Ciclo do Curso de Sargentos Milicianos, no Regimento de Artilharia Ligeira nº 4, em Leiria. Para aqui vim por obrigação militar, depois de ter completado o 1.º Ciclo no CISMI, em Tavira. Uma das minhas preocupações era tirar uma boa nota no curso; tentativa de evitar uma mobilização para as Colónias (então designadas Ultramar), o que veio a acontecer. Isto porque as mobilizações começavam pelas classificações mais baixas. Terminei assim a vida militar no RI 12, na Guarda.
Era o tempo da ditadura: “Tudo pela Nação, nada contra a Nação”, o que mais propriamente significava, “Tudo por Salazar (ou Marcelo Caetano), nada contra Salazar”. Quando menos se esperava, elementos anónimos da PIDE espreitavam a qualquer canto, por qualquer apercebimento de que “este é dos do contra”. Vai daí, toca a deitar a mão para interrogar, torturar para obrigar a informar, castigar, para recear e não voltar…
Sendo contra elites, logo comecei a ficar incomodado, obviamente sem manifestações. Foi-nos recomendado, duma forma sub-reptícia, ainda na formação, de que não nos deveríamos misturar, na rua, com os outros militares do contingente geral, uma vez que éramos instruendos milicianos; e o comandante da unidade militar não gostava desta nossa conduta.
Por vezes arriscava conversar com alguns meus conterrâneos, alguns mesmo antigos colegas da escola e amigos; um ou outro me avisava, ao avistarem algum oficial superior da formação, daquela infeliz recomendação, para que me afastasse.
Terminado o curso e ali colocado, iniciei funções de formador na especialidade de escriturário. Foi para mim uma excelente ocasião para me aperceber, de vários recrutas, desabafando na confidência de notícias que me transmitiam, do que se passava em determinadas redações de jornais e no único canal da RTP, em Lisboa; assim como no Rádio Clube Português, Rádio Renascença e Emissora Nacional, onde colaboravam; notícias essas contra a ditadura, no anonimato, obviamente. Tudo, para mim, era de certo modo um mistério.
Os meios de comunicação social eram totalmente diferentes dos de hoje. Nem todos ainda tinham televisão em casa. Não havia telemóveis, o fax ainda não tinha surgido, e muito menos os computadores, os emails…, as redes sociais…; as chamadas telefónicas eram interurbanas. O stencil era o que servia para passar a papel as ordens de serviço das unidades militares, como duplicador, já que as impressoras de hoje eram uma miragem. O meio de contacto com a família e a namorada era a carta, eventualmente o telefone caro ou o telegrama quando de um assunto urgente se tratasse.
Daí que não me apercebi da revolta dos estudantes em França, no célebre maio de 68, e, porque só depois do 25 de abril 74 se rasgaram os véus da ignorância forçada, do obscurantismo (felizmente que já não ouvimos, há muito tempo, esta palavra…), viemos a ter conhecimento que na Covilhã se preparava um assalto político, através de militantes ativistas da LUAR – Liga de Unidade e Ação Revolucionária, cujo mentor era Hermínio da Palma Inácio. Soubemos do seu assalto ao Banco da Figueira da Foz; do desvio do Paquete Santa Maria, por Henrique Galvão; e do assassínio do General Humberto Delgado e secretária, pela Pide. Mas da Covilhã pacífica, para além de greves dos operários da indústria local, e de vários presos políticos, nem nos passava pela cabeça que alguma tentativa viesse a acontecer.
Houve a sorte pela parte dos covilhanenses de terem surgido um conjunto de acidentes e acontecimentos inesperados para que a Covilhã não viesse a ser tomada de assalto em agosto de 1968. O plano direcionado pela LUAR, movimento este considerado pelo Estado Novo de terrorista, mas que tão só se opunha ao mesmo Estado, previa ações armadas na cidade dos lanifícios.
Foi no livro “Uma Nova Concepção de LUTA”, de Fernando Pereira Marques, elemento que integrou a LUAR; e englobado na coleção Ephemera – Biblioteca Arquivo do escritor José Pacheco Pereira, que vieram a lume as memórias desta tentativa de assalto.
Do assalto, a ser bem-sucedido, constava que os mais novos (como o autor deste livro) e menos responsáveis, distribuiriam um panfleto e colariam um cartaz nas paredes, de apoio
às greves operárias. Para o êxito desta distribuição, tinha havido uma previsão por parte dos ativistas para neutralizar a GNR e a PSP, para além de passarem uma mensagem gravada no posto da Emissora Nacional, bem como “recuperar fundos” nas agências bancárias. Depois de tudo consumado retirar-se-iam. A opção pela Covilhã, em termos de assalto, deve-se ao facto de ter sido uma cidade operária; e a retirada dos ativistas em segurança e com o risco de perseguições anulado, foi um dos motivos escolhidos pela LUAR. A cidade da Covilhã seria então isolada dinamitando umas pontes e acessos, aquando da retirada, já que os responsáveis da LUAR sairiam através de transporte aéreo, via o extinto aeródromo da Covilhã. Depois, uns regressariam aos locais onde mantinham atividade clandestina e outros rumavam à fronteira com o auxílio de passadores.
Tal só não surgiu porque Palma Inácio foi surpreendido por um acidente de viação, antes da chegada, e também a uma série de outros acasos. Estes relatos encontram-se registados no livro atrás referido (páginas 77, 109, 119, 129, 156, 188 e 241).
Também na página 277 se regista o facto de, em fins de 1971, terem vindo do estrangeiro para ingressar nas fileiras da LUAR, uma quantidade considerável de militantes, entre os quais Carlos Jesus Barata (Carlos Gordo), nascido em 1951 na Covilhã e que faleceu num acidente de trabalho após o 25 de abril de 1974.
Outra figura, sobejamente conhecida na cidade covilhanense, referido na página 248, que fora meu colega na Escola Industrial e Comercial Campos Melo da Covilhã, conjuntamente com seu irmão, João Riscado, nos anos 60 do século passado, onde tirou o Curso Geral do Comércio, já falecido, mais tarde envolvido no meio empresarial, com falência de empresas, conhecido pelo Ajax, de seu nome José Manuel Riscado Pereira Monteiro, mas natural de Alcains, viria a ser um dos elementos da LUAR que constituíam a sua rede de apoio no País. Como tal, efetuou vários encontros com o Hermínio da Paula Inácio em Paris e próximo de Salamanca. Foi este elemento de apoio quem passou clandestinamente, na fronteira luso-espanhola, Palma Inácio e outros elementos da LUAR; e os transportou na sua própria viatura desde Vilar Formoso até Lisboa.  A sua ação de apoio levou ainda Palma Inácio a Mira de Aire, uma região dos lanifícios, para que fosse feito o reconhecimento da localidade e dos bancos que ali existiam, para um assalto à mão armada. Além de outros apoios à LUAR, após as primeiras prisões, transportou também na sua viatura, até à fronteira com Espanha, um ativista da LUAR, para que este pudesse fugir à ação policial, seguindo assim clandestinamente para o estrangeiro.


(In "fórum Covilhã", de 10-10-2017)

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