8 de dezembro de 2018

CONTE-NOS A SUA HISTÓRIA JOSÉ EDUARDO SANTOS TENDEIRO


Desta vez trazemos a esta rubrica um antigo combatente, do início da guerra no Ultramar, natural de Elvas mas que se radicou na Covilhã, onde exerceu a sua atividade no ensino (depois de professor passou a inspetor) com que se aposentou.
Tem sido colaborador desta publicação, e também da revista “O Combatente”, já escreveu um livro sobre a sua passagem pelo Ultramar, cujo título “Danos Colaterais” integrou uma das atividades deste Núcleo, em 2017, com a sua apresentação na Biblioteca Municipal da Covilhã.


 Estive lá
 
  Fui um dos que tiveram a felicidade de voltar.     Outros ficaram, jazendo.

  Tive um início de serviço militar normal.
  Incorporado em  Abril de 1959, frequentei o CSM em Mafra, fazendo especialização em transmissões de infantaria, credenciado para a chefia de um centro cripto. Passei à disponibilidade em Março de 1961.
  Liberto da obrigação militar, casei e organizei a viva. Mas a vida organizada durou pouco.
  Chamado de novo às fileiras, foi-me ordenada a frequência do “Curso de Caçadores Especiais” no Centro de Instrução de Operações Especiais (CIOE) em Lamego, de 17 de Julho a 2 de Agosto de 61 e posteriormente integrado no Batalhão de Caçadores Especiais nº357, na especialidade de transmissões da Companhia de Caçadores Especiais nº306, com destino a Angola, onde a situação era efervescente.
  Desembarquei em Luanda em 12 de Maio e no desfile feito na “Marginal”, o Batalhão foi recebido com flores lançadas das janelas dos edifícios. Éramos um acréscimo de segurança aos que temiam novas investidas dos “terroristas”.
  Recebidas viaturas, jipes e Unimogs novos e GMCs em bom estado, numa longa e extenuante marcha de 1035 quilómetros, atingimos o local indicado para o nosso estacionamento em 18 de Junho de 62.   Próximos da fronteira com o ex-Congo Belga, em pleno teatro de guerra,  construímos de raiz, com materiais recolhidos em sanzalas próximas ─ abandonadas─ o nosso estacionamento, baptizado Pangala, base das missões atribuídas: cortar linhas de movimentação  do IN ( o inimigo) e ocupação territorial.
  Sofremos o horror das minas que causaram  mortes ─ quatro─ e feridos graves evacuados.
  Morremos muitas vezes na incerteza do dia seguinte.
  Matámos na ânsia da retaliação, com o eco do grito de revolta de um corajoso missionário contra a exploração dos índios afirmando-os os verdadeiros senhores das suas terras e que “a nenhum título, nem o Papa nem o Rei de Espanha os podem privar desse direito!”
Talvez aqueles “terroristas”  sejam os verdadeiros senhores das suas terras e nem o Papa, nem o “rei” de Portugal, nem nós os possamos privar desse direito.

  Privações de água, de alimentos confeccionados e carências múltiplas assoberbaram-nos. Durante doze meses enfrentámos ainda as agruras de um clima pouco favorável em terreno desconhecido.
 Era a guerra.
  Na minha qualidade de responsável pelas comunicações rádio acresciam as queixas dos operacionais que, de noite, se viam  impossibilitados de usar os rádios distribuídos e, não raras vezes descarregavam em mim a sua frustração. Sucedia que nos tinham sido atribuídos emissores/receptores inapropriados. Funcionando em AM (amplitude modulada) e com reduzida potência, eram incapazes de vencer a estática que surgia com o pôr do sol. As operações nocturnas apeadas, desde o pôr ao nascer do sol, ficavam sem comunicações com a base. A despeito dessa certeza, sempre que havia uma acção nocturna, na “base” ─ a Companhia ─ havia uma escuta permanente tentando ouvir uma voz entre aqueles milhares de grilos em loucos desafios.
  Naquele tempo havia um único emissor/receptor capaz. Montado em viatura ou em estação o ANGRC-9, posteriormente dotado de um amplificador de sinal, cumpria a sua missão. Mas este aparelho dificilmente podia ser usado em patrulhas apeadas: eram necessários pelo menos dois militares para o transportarem, demorava muito tempo a ser preparado para operar e a sua utilização era penosa.
  Pesava ainda sobre mim o secretismo do conteúdo das mensagens recebidas que o operador cripto descodificava, eu conferia e assinava.

  Doze meses depois, trilhando o mesmo caminho, regressámos a Luanda onde ficámos “em prontidão” e guarnecendo pontos sensíveis da cidade.
  Deslocados posteriormente para o sul do rio Quanza, com a missão de zelar pela segurança das instalações petrolíferas de Cabo Ledo, com um pelotão deslocado na Muxima, em plena reserva de caça da Kissama, tivemos o merecido “Repouso do Guerreiro”.
  A 22 de Junho de 64, o Vera Cruz carregou-nos para a Metrópole com a tristeza de termos deixado para sempre quatro amigos no cemitério de S. Salvador do Congo.
   Mas a guerra não ficou lá: noites insones sob cacimbo cerrado,  tensão de uma deslocação em viatura num terreno possivelmente minado, sede mitigada com água suspeita, rações de combate odiadas, a dor raivosa de perder amigos, o desejo de retaliação, a incerteza do dia seguinte e de estarmos a fazer “o devido”, as recordações tenebrosas da guerra vieram connosco.
  Só o tempo vai limando esses “danos colaterais”.
J. Eduardo Tendeiro   (DEZ18)

NOTA: Por lapso, no n.º 112 desta publicação, o texto deste mesmo autor “Conversando”, foi assinado por “Eng.º Tendeiro”. Pede-se a vossa correcção.

(In "O Combatente da Estrela", n.º 113, dezembro 2018)

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