Desta vez
trazemos a esta rubrica um antigo combatente, do início da guerra no Ultramar,
natural de Elvas mas que se radicou na Covilhã, onde exerceu a sua atividade no
ensino (depois de professor passou a inspetor) com que se aposentou.
Tem sido
colaborador desta publicação, e também da revista “O Combatente”, já escreveu
um livro sobre a sua passagem pelo Ultramar, cujo título “Danos Colaterais”
integrou uma das atividades deste Núcleo, em 2017, com a sua apresentação na
Biblioteca Municipal da Covilhã.
Estive
lá
Tive um início de serviço militar normal.
Incorporado em Abril de 1959, frequentei o CSM em Mafra,
fazendo especialização em transmissões de infantaria, credenciado para a chefia
de um centro cripto. Passei à disponibilidade em Março de 1961.
Liberto da obrigação militar, casei e
organizei a viva. Mas a vida organizada durou pouco.
Chamado de novo às fileiras, foi-me ordenada
a frequência do “Curso de Caçadores Especiais” no Centro de Instrução de
Operações Especiais (CIOE) em Lamego, de 17 de Julho a 2 de Agosto de 61 e
posteriormente integrado no Batalhão de Caçadores Especiais nº357, na
especialidade de transmissões da Companhia de Caçadores Especiais nº306, com
destino a Angola, onde a situação era efervescente.
Desembarquei em Luanda em 12 de Maio e no
desfile feito na “Marginal”, o Batalhão foi recebido com flores lançadas das
janelas dos edifícios. Éramos um acréscimo de segurança aos que temiam novas
investidas dos “terroristas”.
Recebidas viaturas, jipes e Unimogs novos e
GMCs em bom estado, numa longa e extenuante marcha de 1035 quilómetros, atingimos
o local indicado para o nosso estacionamento em 18 de Junho de 62. Próximos da fronteira com o ex-Congo Belga,
em pleno teatro de guerra, construímos
de raiz, com materiais recolhidos em sanzalas próximas ─ abandonadas─ o nosso estacionamento, baptizado Pangala, base das missões
atribuídas: cortar linhas de movimentação do IN ( o inimigo) e ocupação territorial.
Sofremos o horror das minas que causaram mortes ─ quatro─ e feridos graves evacuados.
Morremos
muitas vezes na incerteza do dia seguinte.
Matámos na ânsia da retaliação, com o eco do
grito de revolta de um corajoso missionário contra a exploração dos índios
afirmando-os os verdadeiros senhores das suas terras e que “a nenhum título,
nem o Papa nem o Rei de Espanha os podem privar desse direito!”
Talvez aqueles “terroristas” sejam os
verdadeiros senhores das suas terras e nem o Papa, nem o “rei” de Portugal, nem
nós os possamos privar desse direito.
Privações de água, de alimentos confeccionados
e carências múltiplas assoberbaram-nos. Durante doze meses enfrentámos ainda as
agruras de um clima pouco favorável em terreno desconhecido.
Era a guerra.
Na minha qualidade de responsável pelas
comunicações rádio acresciam as queixas dos operacionais que, de noite, se
viam impossibilitados de usar os rádios
distribuídos e, não raras vezes descarregavam em mim a sua frustração. Sucedia
que nos tinham sido atribuídos emissores/receptores inapropriados. Funcionando
em AM (amplitude modulada) e com reduzida potência, eram incapazes de vencer a
estática que surgia com o pôr do sol. As operações nocturnas apeadas, desde o
pôr ao nascer do sol, ficavam sem comunicações com a base. A despeito dessa
certeza, sempre que havia uma acção nocturna, na “base” ─ a Companhia ─ havia
uma escuta permanente tentando ouvir uma voz entre aqueles milhares de grilos
em loucos desafios.
Naquele tempo
havia um único emissor/receptor capaz. Montado em viatura ou em estação o
ANGRC-9, posteriormente dotado de um amplificador de sinal, cumpria a sua
missão. Mas este aparelho dificilmente podia ser usado em patrulhas apeadas:
eram necessários pelo menos dois militares para o transportarem, demorava muito
tempo a ser preparado para operar e a sua utilização era penosa.
Pesava ainda
sobre mim o secretismo do conteúdo das mensagens recebidas que o operador
cripto descodificava, eu conferia e assinava.
Doze meses
depois, trilhando o mesmo caminho, regressámos a Luanda onde ficámos “em
prontidão” e guarnecendo pontos sensíveis da cidade.
Deslocados
posteriormente para o sul do rio Quanza, com a missão de zelar pela segurança
das instalações petrolíferas de Cabo Ledo, com um pelotão deslocado na Muxima,
em plena reserva de caça da Kissama, tivemos o merecido “Repouso do Guerreiro”.
A 22 de Junho
de 64, o Vera Cruz carregou-nos para a Metrópole com a tristeza de termos deixado
para sempre quatro amigos no cemitério de S. Salvador do Congo.
Mas a guerra não ficou lá: noites insones sob
cacimbo cerrado, tensão de uma
deslocação em viatura num terreno possivelmente minado, sede mitigada com água
suspeita, rações de combate odiadas, a dor raivosa de perder amigos, o desejo
de retaliação, a incerteza do dia seguinte e de estarmos a fazer “o devido”, as
recordações tenebrosas da guerra vieram connosco.
Só o tempo vai
limando esses “danos colaterais”.
J. Eduardo Tendeiro
(DEZ18)
NOTA: Por lapso, no n.º 112 desta publicação, o texto
deste mesmo autor “Conversando”, foi assinado por “Eng.º Tendeiro”. Pede-se a
vossa correcção.
(In "O Combatente da Estrela", n.º 113, dezembro 2018)
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