Na arrumação que periodicamente faço aos arquivos acumulados de folhas
soltas selecionadas, algumas já a amarelecer pelo tempo, apontamentos
registados para que a memória não me atraiçoe, páginas de jornais ou revistas
que vou retirando a algumas publicações após a sua leitura, não evito uma
acumulação de assuntos de interesse que me incomoda deitar fora, mas que não
posso abarcar nos espaços já exíguos da minha biblioteca, onde também o meu
escritório se encontra sobreposto de livros aqui e acolá, na brandura de poder
chegar ao fim da leitura de duas obras na simultaneidade.
De permeio não posso deixar de evitar os hiatos necessários para a colaboração
nos excelentes periódicos que há muito me dão a honra de ter um espaço próprio
para o vício da escrita.
E foi assim que, já com um saco repleto de papel do que da minha parte
remanesce, me vejo forçado, contra a minha vontade, a ver partir memórias de
vários tempos (para além do que já foi lido, de todos os jornais que assino,
sem contar os digitais) com destino ao Banco Alimentar Contra a Fome, recolha
destinada a ajudar Instituições de Caridade. Foi então que encontrei umas
páginas interessantes, de autoria do Médico Neurocirurgião, Raimundo Fernandes.
Transcrevo parte do seu interessante texto, ao qual vou entremeando com
vivências do meu tempo, contadas por quem viveu ainda no século transato.
“O cérebro humano é uma fábrica de produtos químicos que aceita,
transforma e controla tudo. Quase tudo... E até chega a transformar lícitos em
ilícitos. Trazemos os exemplos do álcool e do chocolate.
Dois amigos, ainda jovens, conversavam animadamente numa sala de espera
de um serviço de sangue no Centro do país. Manhã invernosa, em pleno janeiro
dos anos 60, com um frio de rachar na rua, mas confortável naquela sala meia
despida e sem grande movimento. Florentino, com um ar descontraído, corpulento
e de mãos sapudas, abria-se num sorriso fácil enquanto falava. Foi retirado da
escola bem cedo, não chegando a fazer a 3ª classe. Sendo o mais velho de uma
família de sete, com quatro cachopas e três rapazes, foi chamado em tenra idade
ao trabalho do campo, atrás de um arado puxado por uma mula que pachorrentamente
abria o coração da terra da sementeira.
Para dar força comia, quando havia, sopas de cavalo cansado. Por volta
dos 15 anos ficou maltês, porque segundo dizia, o salário do velho não dava
para tanta boca. A independência no trabalho e no ganho era uma imensa
responsabilidade, acrescida da vigilância que tinha de fazer aos namoros das
irmãs, todas elas iletradas como se usava na altura. Este adulto jovem, agora
com 25 anos, envelhecido na côdea da terra ribatejana, tirou um dia de trabalho
para dar sangue, em prol de um conterrâneo, vítima de acidente com uma máquina.
O Florentino, quando chamado pela médica de bata branca, foi questionado:
- “Diga-me que doenças já teve. Os remédios que está a tomar. Se já foi
operado. E a razão por que quer dar sangue”. Respondeu sem grandes pressas,
enquanto a médica escrevinhava numa folha.
- Então e tabaco e bebidas?
- Senhora Doutora, tabaco nunca fumei, agora vinho bebo como toda a gente
da minha terra. De preferência às refeições, mas às vezes ao fim de semana a
jogar à malha, ou às cartas, sempre vão uns copos sem acompanhamento...
- De que quantidades é que estamos a falar?
- Bom não é uma coisa certa, mas talvez aí uns dois litros...
- (Surpresa) ... Por semana?
- (Riso aberto) ... Senhora doutora o trabalho é pesado e só um litro
está incluído no contrato. Por dia. Estamos acostumados, mas realmente bebe-se
bem...
A jovem clínica, que nunca tinha emborcado um copo, não acrescentou mais
linhas aos antecedentes pessoais e mandou deitar o jovem na marquesa para dar
início à colheita”.
Na Alemanha, durante a festa da cerveja, qualquer alemão médio bebe 10
litros de cerveja num fim-de-semana. Por cá, sem regras, e, por vezes sem
decoro, também acontece cada vez mais em jovens, com cérebros imaturos. Rapazes
e raparigas. Sem distinção. Até cair...
A regra básica para contornar o decréscimo do declínio cognitivo, no
pressuposto de evitar o risco máximo de insanidade mental ou mesmo da própria
vida é a aquisição do conhecimento adequado, a preparação para os eventos e a
prudência necessária.
O inglês Thomas Quincey, escritor do século XIX, experimentou o Láudano
para uma dor de dentes, ficou viciado para o resto da vida e escreveu um livro
sobre a sua dependência. O ópio fez a diferença. Escritores como Eça de Queirós
e Garcia Márquez, conscientes dos efeitos do Láudano, imortalizaram a mistura
em sórdidas conjeturas de mortes por envenenamento em “Os Maias” e “Cem anos de
solidão”.
“Quanto ao chocolate, pessoas vulneráveis podem ter mudanças bruscas de
humor, depois de comerem chocolate com alto teor de cacau, sobretudo na
presença de inibidores da MAO, por exemplo o fumo do tabaco e antidepressivos.
Cada pessoa tem um nível de excitação inicial, determinado por fatores
genéticos, pela fisiologia, situação de doença, fatores ambientais ou historial
de drogas. Comer chocolate é bom, dá habituação, mas é gratificante. Contudo,
pode acontecer, sobretudo nos homens, grave excitação e irritabilidade, talvez
relacionado com os estrogénios nele contidos. Mas.... Chocolate preto é mesmo
bom... Em doses moderadas.”
Vem agora a minha contextualização, de passagens da vida real de quem
permaneceu neste mundo dos vivos, nas décadas de 50 e 60 do século XX.
É sobejamente conhecida a estória daquele envinagrado, na altura em que
aquelas que são agora as instalações da Universidade da Beira Interior (UBI)
percorria o passeio cambaleando, sem contar com o arco que, no final do passeio
teria de se sair para o continuar após a sua saída, arco esse granítico. Ao ir
de encontro à parede do mesmo, tal a sua alcoolémia, volta para trás, altamente
irritado, apregoando aos quatro ventos que o arco do quartel (na altura o Batalhão
de Caçadores 2 (BC2), extinto) estava fechado...
Ou daquela senhora que, condoída com o estado de embriaguez dum homem,
todo enrolado num dos bancos do Jardim Municipal, sussurrava para os
transeuntes: “Que miséria esta!”. A resposta não tardou do homem mesmo no
estado em que se encontrava: “Miséria, não, minha senhora! Fartura! Fartura!...
Sobre os homens, e, mormente, as mulheres iletradas naqueles famigerados
tempos salazaristas, de milhares de operários e operárias fabris da então
denominada Manchester Portuguesa, era confrangedor verificar a
indiferença em aprender a ler ou escrever, que o contar lá ia indo com os
trocos atados a um lenço, em substituição dum porta-moedas, só confrontados com
grande dificuldade quando era para pagar a décima, já que o que produziam numas
pequenas leiras por vezes remediavam para colmatar o que faltava na mísera
féria semanal.
Meu Pai, entre os anos da década de 50 e 60 foi o primeiro a reger um
Curso de Educação de Adultos na Cadeia Comarcã da Covilhã, sendo muitas vezes
necessário ir a casa das famílias dos presos a fim de obter documento de
identificação, geralmente a Cédula Pessoal, já que ainda não era obrigatório o
Bilhete de Identidade. Uma vez que o acompanhei, ainda petiz, à localidade da
Borralheira, freguesia de Cantar Galo e Vila do Carvalho, recebemos a resposta
da esposa do preso: “Mas para que é que ele quer fazer o exame da 3ª e 4ª classe?
Para ser professor?...”. Palavras para quê? Era a morbidez cultural daqueles
tempos.
Por último, o que reputo de mais interessante, passado com o médico
ginecologista covilhanense, antigo Deputado da Nação e Presidente da Edilidade
Covilhanense, grande amigo dos pobres, José Ranito Baltazar.
Naqueles tempos da “outra senhora”,
ao qual foi um grande devoto, José Ranito Baltazar, por quem os Covilhanenses
sempre tiveram muita consideração, era de uma conduta temperamental em que umas
vezes se irritava; outras vezes, de um comportamento muito afável, mormente
quando ao serviço da sua atividade profissional de médico ou então da autarquia
covilhanense, como presidente. Quando maldisposto, diziam que estava “à
Ranito”; mas quando de boa disposição, atribuíam-lhe o estado de estar “à
Baltazar”. Acontece que certo dia um seu trabalhador agrícola, iletrado, foi ao
seu consultório pedindo-lhe uma requisição para uma carrada de estrume para uma
das propriedades agrícolas. E, entretanto, aproveitou para lhe pedir medicação
para umas dores que o homem vinha tendo há já algum tempo. O médico,
interrompido pela sua empregada, voltou depois a atender o seu empregado,
jornaleiro, e, na receita médica, esquecendo-se da medicação, receitou: “Uma
carrada de estrume suficiente para os terrenos”. O iletrado jornaleiro, vai de
imediato à Farmácia Pedroso, com o sentido de lhe fornecerem a medicação quando
deparam com o lapso, numa situação hilariante. E, por hoje, como dizia a minha
avó: bonda!
João de Jesus Nunes
(In “Jornal O Olhanense”, de 15-03-2023)
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