2 de março de 2023

SABER ZANGAR-SE

 

Pegando no título que Joel Neto insere no texto da sua obra “Banda Sonora para um Regresso a Casa”, serve-me de fio condutor para interpor algumas passagens em várias vertentes da vida, a fim de procurar compreender situações que sempre ocorrem em cada um de nós, quando a travagem na zanga por vezes não deixa de ser disfuncional. Eis que uns são mais tolerantes, outros menos agressivos, enquanto outros deitam para detrás das costas o desaguisado e engolem sapos vivos para não se zangarem com amigos, ou mesmo familiares.

Quem ainda não se zangou, de verdade? O negativo desta questão é o não deixarem de saber dizê-lo na cara umas das outras.

Certo e verdade é que já tinha escrito três longos parágrafos sobre casos envolvendo a zanga, em várias facetas da vida, ao longo de mais de sete décadas e meia que, felizmente, já vi passar, marcantes na juventude, na vida militar por obrigação, e mais recentemente com amigo, mas optei por deixar correr na penumbra para o esquecimento.

E isto, altura em que escrevo esta crónica, na véspera do 24 de fevereiro, em que se comemora um ano da invasão russa na Ucrânia, pelo que faz mais sentido direcionar o sentido da zanga contra o déspota Putin. O tirano faz recordar (porque estamos nas competições europeias de futebol) os nazis, em que também para eles o futebol era uma fonte de afirmação e acima de tudo uma questão de Estado. Um monumento na Ucrânia, lembra a equipa do Dínamos de Kiev, de 1942. Em plena ocupação alemã, eles cometeram a loucura de derrotar uma seleção de Hitler no estádio local. O aviso foi-lhes feito com antecedência: Se ganharem, morrem... Os jogadores do “Kiev” entraram em campo resignados a perder. Todavia, nem o medo nem a fome, os impediram de serem dignos – venceram. Quando terminou a partida, os onze briosos jogadores foram fuzilados vestidos com os seus equipamentos, no alto de um barranco.

Grande povo ucraniano, que, volvido tanto tempo, ainda mantém o seu amor patriótico, numa fortíssima zanga contra o malfeitor.

Enquanto isto, outras zangas singram por este nosso país à beira-mar plantado, mas pelos nossos governantes muito maltratado. Persistem as grandes zangas dos professores, e de outras classes sociais, com os de menores recursos a ver a esperança como palavra vã, numa zanga pelo esbanjamento dos dinheiros públicos.

E que dizer dos abusos sexuais cometidos por membros da Igreja? Ainda nos zangamos muito, é verdade. “Com a maior das facilidades nos zangamos contra inimigos abstratos, como o ‘Governo’, o ‘capitalismo selvagem’ ou mesmo apenas ‘a crise’. Com a maior das facilidades nos zangamos com aqueles que entendemos como nossos subordinados, no trabalho ou na vida em geral (afinal os nossos ‘superiores ‘acabam por pôr-nos a pata em cima, alguém vai ter de pagar a conta). Com aqueles que estão, de alguma forma, em ascendente sobre nós, já não nos zangamos, amuamos, que é a forma mais cobarde de nos zangarmos. Aos nossos iguais simplesmente não dizemos nada: engolimos e tornamos a engolir, convencendo-nos de que do outro lado está, afinal, um pobre diabo, tão pobre que nem merece uma zanga – e, quando enfim nos zangamos, é para dar-lhe um tiro na cabeça, como todos os dias nos mostram os jornais”.

“Não respondas”, aconselham-nos os sábios. Não dês troco. Não ligues. Não percas a cabeça. Tens de ser superior. E, inevitavelmente, viramos todos uns diplomatazinhos de esquina, sem capacidade para dar um grito e a seguir fazer as pazes. Tornamo-nos ainda mais hipócritas do que aquilo que a nossa contraditória condição já nos obrigava.

Eu prefiro um homem que parta a loiça a um choninhas que sublima tudo e, no final, ainda me passa a mão pelo pêlo. Quem não é capaz de zangar-se também não é capaz de uma gargalhada – e, se nos zangarmos com ele, o primeiro argumento racional que utiliza é: “Não sejas assim.” Mas que diabo é isso, “não sejas assim”? “Assim” capaz de ver uma relação pessoal deteriorar-se sem dar um murro na mesa para tentar salvá-la?

Só com frontalidade, coragem e zelo podem contar comigo.

 

João de jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “O Olhanense”, de 01-03-2023)

 

 

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