Pegando no título que Joel Neto
insere no texto da sua obra “Banda Sonora para um Regresso a Casa”, serve-me de
fio condutor para interpor algumas passagens em várias vertentes da vida, a fim
de procurar compreender situações que sempre ocorrem em cada um de nós, quando
a travagem na zanga por vezes não deixa de ser disfuncional. Eis que uns são
mais tolerantes, outros menos agressivos, enquanto outros deitam para detrás
das costas o desaguisado e engolem sapos vivos para não se zangarem com amigos,
ou mesmo familiares.
Quem ainda não se zangou, de
verdade? O negativo desta questão é o não deixarem de saber dizê-lo na cara umas
das outras.
Certo e verdade é que já tinha
escrito três longos parágrafos sobre casos envolvendo a zanga, em várias
facetas da vida, ao longo de mais de sete décadas e meia que, felizmente, já vi
passar, marcantes na juventude, na vida militar por obrigação, e mais recentemente
com amigo, mas optei por deixar correr na penumbra para o esquecimento.
E isto, altura em que escrevo
esta crónica, na véspera do 24 de fevereiro, em que se comemora um ano da
invasão russa na Ucrânia, pelo que faz mais sentido direcionar o sentido da zanga
contra o déspota Putin. O tirano faz recordar (porque estamos nas competições
europeias de futebol) os nazis, em que também para eles o futebol era uma fonte
de afirmação e acima de tudo uma questão de Estado. Um monumento na Ucrânia,
lembra a equipa do Dínamos de Kiev, de 1942. Em plena ocupação alemã, eles
cometeram a loucura de derrotar uma seleção de Hitler no estádio local. O aviso
foi-lhes feito com antecedência: Se ganharem, morrem... Os jogadores do
“Kiev” entraram em campo resignados a perder. Todavia, nem o medo nem a fome,
os impediram de serem dignos – venceram. Quando terminou a partida, os onze
briosos jogadores foram fuzilados vestidos com os seus equipamentos, no alto de
um barranco.
Grande povo ucraniano, que,
volvido tanto tempo, ainda mantém o seu amor patriótico, numa fortíssima zanga
contra o malfeitor.
Enquanto isto, outras zangas
singram por este nosso país à beira-mar plantado, mas pelos nossos governantes muito
maltratado. Persistem as grandes zangas dos professores, e de outras classes
sociais, com os de menores recursos a ver a esperança como palavra vã, numa
zanga pelo esbanjamento dos dinheiros públicos.
E que dizer dos abusos sexuais
cometidos por membros da Igreja? Ainda nos zangamos muito, é verdade. “Com a
maior das facilidades nos zangamos contra inimigos abstratos, como o ‘Governo’,
o ‘capitalismo selvagem’ ou mesmo apenas ‘a crise’. Com a maior das facilidades
nos zangamos com aqueles que entendemos como nossos subordinados, no trabalho
ou na vida em geral (afinal os nossos ‘superiores ‘acabam por pôr-nos a pata em
cima, alguém vai ter de pagar a conta). Com aqueles que estão, de alguma forma,
em ascendente sobre nós, já não nos zangamos, amuamos, que é a forma mais
cobarde de nos zangarmos. Aos nossos iguais simplesmente não dizemos nada:
engolimos e tornamos a engolir, convencendo-nos de que do outro lado está,
afinal, um pobre diabo, tão pobre que nem merece uma zanga – e, quando enfim
nos zangamos, é para dar-lhe um tiro na cabeça, como todos os dias nos mostram
os jornais”.
“Não respondas”, aconselham-nos
os sábios. Não dês troco. Não ligues. Não percas a cabeça. Tens de ser
superior. E, inevitavelmente, viramos todos uns diplomatazinhos de esquina, sem
capacidade para dar um grito e a seguir fazer as pazes. Tornamo-nos ainda mais
hipócritas do que aquilo que a nossa contraditória condição já nos obrigava.
Eu prefiro um homem que parta a
loiça a um choninhas que sublima tudo e, no final, ainda me passa a mão pelo
pêlo. Quem não é capaz de zangar-se também não é capaz de uma gargalhada – e,
se nos zangarmos com ele, o primeiro argumento racional que utiliza é: “Não
sejas assim.” Mas que diabo é isso, “não sejas assim”? “Assim” capaz de ver uma
relação pessoal deteriorar-se sem dar um murro na mesa para tentar salvá-la?
Só com frontalidade, coragem e
zelo podem contar comigo.
João de jesus Nunes
(In “O Olhanense”, de 01-03-2023)
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