22 de outubro de 2025

DO ESTADO NOVO, PASSANDO PELO MOVIMENTO NACIONAL FEMININO, AO ESTADO DEMOCRÁTICO

 

A história política de Portugal na segunda metade do século XX é marcada por uma profunda rutura estrutural: a passagem de um regime autoritário, de matriz corporativista e nacionalista, para um sistema democrático, pluralista e descentralizado. A análise deste percurso, que atravessa o Estado Novo (1933-1974), a criação e atuação do Movimento Nacional Feminino (1961-1974) e a subsequente construção do Estado Democrático (a partir de 1974), revela não apenas mudanças políticas, mas também transformações sociais e culturas profundas, muitas das quais vividas intensamente pelas Forças Armadas e pelos combatentes portugueses.

O Estado Novo, uma ditadura de longa duração, foi instituído formalmente pela Constituição de 1933, consolidando o regime autoritário construído por António de Oliveira Salazar a partir da Ditadura Militar de 1926. Estruturado sob os princípios do corporativismo, do nacionalismo católico e do antiliberalismo, o regime reforçou o poder executivo, restringiu os partidos políticos (mantendo apenas a União Nacional como partido único) e limitou direitos fundamentais através de mecanismos como a censura prévia e a atuação da Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE).

No plano económico, a política do Estado Novo privilegiou a autarcia, a disciplina orçamental e a estabilidade monetária, sacrificando o desenvolvimento industrial e social. O regime também reforçou uma visão imperial, consagrada no Ato Colonial de 1930 e reafirmada na Constituição de 1933, que considerava as colónias ultramarinas parte integrante da Nação. Essa visão justificou a manutenção do império português, mesmo perante as pressões internacionais do pós-Segunda Guerra Mundial, e esteve na origem da Guerra Colonial.

A Guerra Colonial (1961 – 1974) marcou uma geração inteira de portugueses. Iniciada com os ataques em Angola (4 de fevereiro de 1961), rapidamente se estendeu a Guiné-Bissau (1963) e Moçambique (1964), envolvendo mais de 800 mil militares ao longo de 13 anos de conflito. Este esforço de guerra prolongado desgastou profundamente o regime, que, mesmo após a morte de Salazar (1970) e a ascensão de Marcelo Caetano, não conseguiu encontrar uma solução política para o impasse colonial.

O Movimento Nacional Feminino (MNF), fundado em 28 de abril de 1961 por 25 mulheres sob a liderança de Cecília Supico Pinto, surgiu como uma organização de apoio logístico e moral às Forças Armadas. Embora intimamente ligado ao regime salazarista, o MNF constituiu uma rede voluntária de milhares de mulheres que, a partir de Portugal continental, dinamizavam campanhas de angariação de bens, organizavam “aerogramas” e pacotes destinados aos combatentes e visitavam teatros de operações no Ultramar. Foi uma resposta patriótica aos sucessivos eventos ocorridos contra o Estado Novo nesse ano, como o desvio do navio Santa Maria pelo capitão Henrique Galvão (1895 – 1970), em 22 de janeiro, e os primeiros ataques em Luanda (4 de fevereiro) e no norte de Angola (15 de março), que desencadearam a Guerra do Ultramar. Promoveram também a iniciativa das Madrinhas de Guerra.

A atuação do MNF, ainda que integrada na propaganda oficial, conferiu às mulheres uma visibilidade pública inédita no contexto conservador do Estado Novo, reforçando o seu papel social sob o ideal de “mãe-pátria”. Este movimento foi, simultaneamente, uma expressão de nacionalismo do regime e um fenómeno social de mobilização civil em tempo de guerra, contribuindo para mitigar o isolamento sentido por muitos militares destacados em África.

O prolongamento da guerra, o isolamento internacional de Portugal e a insatisfação crescente entre os militares levaram ao 25 de Abril de 1974, a chamada Revolução dos Cravos, protagonizada pelo Movimento das Forças Armadas (MFA). A revolução derrubou pacificamente o regime e iniciou o Processo Revolucionário em Curso (PREC), um período (1974 – 1976) caraterizado por intensa mobilização social, instabilidade política e redefinição do papel das Forças Armadas.

A aprovação da Constituição de 1976 consolidou os alicerces do Estado Democrático, incluindo a separação de poderes, o sufrágio universal, os direitos fundamentais e a descentralização política. A nova ordem constitucional reconheceu o fim do império colonial, afirmando a autodeterminação dos povos africanos e encerrando o ciclo histórico do colonialismo português.

O percurso histórico entre 1933 e 1976 reflete tensões entre autoritarismo, colonialismo, modernização e democratização. Para os antigos combatentes, este período permanece particularmente significativo: muitos viveram o contraste entre a mobilização em nome do império e a transição para um país democrático e europeu.

Recordar o Estado Novo, o Movimento Nacional Feminino e a construção do Estado Democrático não é apenas um exercício académico, mas também um ato de justiça histórica. A memória destes acontecimentos permite compreender melhor os sacrifícios e a coragem das gerações que serviram Portugal em tempos de mudança, preservando o seu legado para as novas gerações.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “O Combatente da Estrela”, nº. 140 – OUT/2025)

 


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