A história política de Portugal
na segunda metade do século XX é marcada por uma profunda rutura estrutural: a passagem
de um regime autoritário, de matriz corporativista e nacionalista, para um
sistema democrático, pluralista e descentralizado. A análise deste percurso,
que atravessa o Estado Novo (1933-1974), a criação e atuação do Movimento
Nacional Feminino (1961-1974) e a subsequente construção do Estado Democrático
(a partir de 1974), revela não apenas mudanças políticas, mas também
transformações sociais e culturas profundas, muitas das quais vividas
intensamente pelas Forças Armadas e pelos combatentes portugueses.
O Estado Novo, uma ditadura de
longa duração, foi instituído formalmente pela Constituição de 1933,
consolidando o regime autoritário construído por António de Oliveira Salazar a
partir da Ditadura Militar de 1926. Estruturado sob os princípios do
corporativismo, do nacionalismo católico e do antiliberalismo, o regime
reforçou o poder executivo, restringiu os partidos políticos (mantendo apenas a
União Nacional como partido único) e limitou direitos fundamentais através de
mecanismos como a censura prévia e a atuação da Polícia Internacional de Defesa
do Estado (PIDE).
No plano económico, a política do
Estado Novo privilegiou a autarcia, a disciplina orçamental e a estabilidade
monetária, sacrificando o desenvolvimento industrial e social. O regime também reforçou
uma visão imperial, consagrada no Ato Colonial de 1930 e reafirmada na
Constituição de 1933, que considerava as colónias ultramarinas parte integrante
da Nação. Essa visão justificou a manutenção do império português, mesmo
perante as pressões internacionais do pós-Segunda Guerra Mundial, e esteve na
origem da Guerra Colonial.
A Guerra Colonial (1961 – 1974)
marcou uma geração inteira de portugueses. Iniciada com os ataques em Angola (4
de fevereiro de 1961), rapidamente se estendeu a Guiné-Bissau (1963) e Moçambique
(1964), envolvendo mais de 800 mil militares ao longo de 13 anos de conflito.
Este esforço de guerra prolongado desgastou profundamente o regime, que, mesmo
após a morte de Salazar (1970) e a ascensão de Marcelo Caetano, não conseguiu encontrar
uma solução política para o impasse colonial.
O Movimento Nacional Feminino
(MNF), fundado em 28 de abril de 1961 por 25 mulheres sob a liderança de
Cecília Supico Pinto, surgiu como uma organização de apoio logístico e moral às
Forças Armadas. Embora intimamente ligado ao regime salazarista, o MNF
constituiu uma rede voluntária de milhares de mulheres que, a partir de
Portugal continental, dinamizavam campanhas de angariação de bens, organizavam
“aerogramas” e pacotes destinados aos combatentes e visitavam teatros de
operações no Ultramar. Foi uma resposta patriótica aos sucessivos eventos
ocorridos contra o Estado Novo nesse ano, como o desvio do navio Santa Maria
pelo capitão Henrique Galvão (1895 – 1970), em 22 de janeiro, e os primeiros
ataques em Luanda (4 de fevereiro) e no norte de Angola (15 de março), que
desencadearam a Guerra do Ultramar. Promoveram também a iniciativa das
Madrinhas de Guerra.
A atuação do MNF, ainda que
integrada na propaganda oficial, conferiu às mulheres uma visibilidade pública
inédita no contexto conservador do Estado Novo, reforçando o seu papel social
sob o ideal de “mãe-pátria”. Este movimento foi, simultaneamente, uma expressão
de nacionalismo do regime e um fenómeno social de mobilização civil em tempo de
guerra, contribuindo para mitigar o isolamento sentido por muitos militares
destacados em África.
O prolongamento da guerra, o
isolamento internacional de Portugal e a insatisfação crescente entre os
militares levaram ao 25 de Abril de 1974, a chamada Revolução dos Cravos, protagonizada
pelo Movimento das Forças Armadas (MFA). A revolução derrubou pacificamente o
regime e iniciou o Processo Revolucionário em Curso (PREC), um período (1974 –
1976) caraterizado por intensa mobilização social, instabilidade política e redefinição
do papel das Forças Armadas.
A aprovação da Constituição de
1976 consolidou os alicerces do Estado Democrático, incluindo a separação de
poderes, o sufrágio universal, os direitos fundamentais e a descentralização
política. A nova ordem constitucional reconheceu o fim do império colonial, afirmando
a autodeterminação dos povos africanos e encerrando o ciclo histórico do
colonialismo português.
O percurso histórico entre 1933 e
1976 reflete tensões entre autoritarismo, colonialismo, modernização e
democratização. Para os antigos combatentes, este período permanece
particularmente significativo: muitos viveram o contraste entre a mobilização
em nome do império e a transição para um país democrático e europeu.
Recordar o Estado Novo, o
Movimento Nacional Feminino e a construção do Estado Democrático não é apenas
um exercício académico, mas também um ato de justiça histórica. A memória destes
acontecimentos permite compreender melhor os sacrifícios e a coragem das
gerações que serviram Portugal em tempos de mudança, preservando o seu legado
para as novas gerações.
João de Jesus Nunes
(In “O Combatente da Estrela”, nº.
140 – OUT/2025)
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