Somos um país de brandos
costumes. Entusiasmamo-nos com a efusão daqueles dias que não afetam diretamente
as nossas vidas. Apesar do desalento e da desilusão provocados pela terrível devastação
dos fogos, os pesadelos acabam por passar e os sonhos voltam. Mas nem todos querem
ou podem renascer das cinzas.
Já não são só as alterações
climáticas a causarem preocupação acrescida. É o homem que não se preocupa – não
apenas consigo, mas também com os vindouros – mesmo estando à beira da
catástrofe.
Em 2011, Portugal foi sacudido por
uma expressão que feriu o nosso orgulho coletivo: as agências de rating
internacionais classificaram a dívida soberana do país como “lixo”. Também eu manifestei
a minha indignação, na comunicação social, quando a Moody’s colocou Portugal naquela
situação. Reporto-me a um artigo de 13-07-2011, publicado no Notícias da
Covilhã, onde escrevi:
“E, nesta lixadela, vale mais mandá-los
às malvas, ou mais propriamente, para o rating que os parta!”.
E mais adiante:
“É em plena época estival que vem uma agência
de rating do Pacífico, e também do Atlântico, deixar-nos lixados com a sua ‘oferta’
de nível de lixo, pelo que apetece dizer: Que se lixem! Ou mesmo, ide-vos
lixar!”
De repente, a palavra usada no
quotidiano para designar o que não tem valor passou a definir a confiança dos
mercados em nós. Era o tempo da intervenção externa, da troika, da austeridade
dura, da emigração forçada de milhares de jovens qualificados. O país sentia-se
diminuído, olhado de fora como um território pouco credível para investir.
Paradoxalmente, esse mesmo
Portugal é hoje elogiado pelas mesmas agências, que subiram a classificação da
nossa dívida para patamares de confiança. A economia apresenta indicadores de
robustez, o défice orçamental tornou-se excedente em certos momentos, a dívida pública
recua timidamente em percentagem do PIB e as exportações, o turismo e setores
inovadores ganham novo fôlego. O país que era “lixo” é agora considerado
seguro, estável, recomendável.
Mas a pergunta que se impõe é
inevitável: mudou assim tanto Portugal?
Se olharmos para as ruas, percebemos
que a vida das famílias continua marcada por salários baixos, habitação
proibitiva para jovens e classes médias, serviços públicos sob pressão e uma
perceção generalizada de desigualdade. A macroeconomia sobe de patamar. Mas a
microeconomia – a vida real de quem conta cada euro no final do mês – nem
sempre acompanha.
Este paradoxo é revelador: os
ratings medem a confiança dos mercados financeiros, não a felicidade das
pessoas. O país pode estar melhor visto lá fora, sem que isso signifique que os
cidadãos sintam esse progresso no bolso ou no dia a dia. Ainda assim, não
devemos menosprezar a diferença: ter a confiança dos mercados significa juros
mais baixos, dívida mais barata, mais margem para investir. É um círculo virtuoso
que pode – se bem aproveitado – traduzir-se em benefícios concretos para a
sociedade.
Em 2011, Portugal era o retrato
da desconfiança; em 2025, é a imagem de uma recuperação reconhecida. Entre o
“lixo” e o prestígio decorre a mesma realidade nacional: um povo resistente,
capaz de se reinventar, mas que ainda espera que as estatísticas do crescimento
se transformem em qualidade de vida efetiva.
Talvez este seja o verdadeiro
desafio para o futuro: não apenas sermos classificados como recomendáveis nos
mercados, mas sobretudo sermos reconhecidos como um país onde vale a pena
viver, trabalhar e sonhar.
João de Jesus Nunes
(In “O Olhanense”, de 01-10-2025)
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