3 de outubro de 2025

ENTRE O “LIXO” E O PRESTÍGIO: A PARADOXAL VIAGEM DE PORTUGAL NOS RATINGS


 

Somos um país de brandos costumes. Entusiasmamo-nos com a efusão daqueles dias que não afetam diretamente as nossas vidas. Apesar do desalento e da desilusão provocados pela terrível devastação dos fogos, os pesadelos acabam por passar e os sonhos voltam. Mas nem todos querem ou podem renascer das cinzas.

Já não são só as alterações climáticas a causarem preocupação acrescida. É o homem que não se preocupa – não apenas consigo, mas também com os vindouros – mesmo estando à beira da catástrofe.

Em 2011, Portugal foi sacudido por uma expressão que feriu o nosso orgulho coletivo: as agências de rating internacionais classificaram a dívida soberana do país como “lixo”. Também eu manifestei a minha indignação, na comunicação social, quando a Moody’s colocou Portugal naquela situação. Reporto-me a um artigo de 13-07-2011, publicado no Notícias da Covilhã, onde escrevi:

“E, nesta lixadela, vale mais mandá-los às malvas, ou mais propriamente, para o rating que os parta!”.

E mais adiante:

 “É em plena época estival que vem uma agência de rating do Pacífico, e também do Atlântico, deixar-nos lixados com a sua ‘oferta’ de nível de lixo, pelo que apetece dizer: Que se lixem! Ou mesmo, ide-vos lixar!”

De repente, a palavra usada no quotidiano para designar o que não tem valor passou a definir a confiança dos mercados em nós. Era o tempo da intervenção externa, da troika, da austeridade dura, da emigração forçada de milhares de jovens qualificados. O país sentia-se diminuído, olhado de fora como um território pouco credível para investir.

Paradoxalmente, esse mesmo Portugal é hoje elogiado pelas mesmas agências, que subiram a classificação da nossa dívida para patamares de confiança. A economia apresenta indicadores de robustez, o défice orçamental tornou-se excedente em certos momentos, a dívida pública recua timidamente em percentagem do PIB e as exportações, o turismo e setores inovadores ganham novo fôlego. O país que era “lixo” é agora considerado seguro, estável, recomendável.

Mas a pergunta que se impõe é inevitável: mudou assim tanto Portugal?

Se olharmos para as ruas, percebemos que a vida das famílias continua marcada por salários baixos, habitação proibitiva para jovens e classes médias, serviços públicos sob pressão e uma perceção generalizada de desigualdade. A macroeconomia sobe de patamar. Mas a microeconomia – a vida real de quem conta cada euro no final do mês – nem sempre acompanha.

Este paradoxo é revelador: os ratings medem a confiança dos mercados financeiros, não a felicidade das pessoas. O país pode estar melhor visto lá fora, sem que isso signifique que os cidadãos sintam esse progresso no bolso ou no dia a dia. Ainda assim, não devemos menosprezar a diferença: ter a confiança dos mercados significa juros mais baixos, dívida mais barata, mais margem para investir. É um círculo virtuoso que pode – se bem aproveitado – traduzir-se em benefícios concretos para a sociedade.

Em 2011, Portugal era o retrato da desconfiança; em 2025, é a imagem de uma recuperação reconhecida. Entre o “lixo” e o prestígio decorre a mesma realidade nacional: um povo resistente, capaz de se reinventar, mas que ainda espera que as estatísticas do crescimento se transformem em qualidade de vida efetiva.

Talvez este seja o verdadeiro desafio para o futuro: não apenas sermos classificados como recomendáveis nos mercados, mas sobretudo sermos reconhecidos como um país onde vale a pena viver, trabalhar e sonhar.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “O Olhanense”, de 01-10-2025)

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