Face às justas críticas que têm
vindo a ser feitas à anterior governação covilhanense, no que toca ao panorama socioambiental
que tem sido negligenciado, impôs-se-me uma breve retrospetiva da Covilhã de
outros tempos. Na verdade, situações como a recente proliferação de prédios em
altura, que beliscam profundamente a paisagem e retiram aos vizinhos a visão
panorâmica que sempre tiveram – como sucede na Rua Manuel de Castro Martins,
que foi meu ilustre professor – ilustram bem essa problemática. Como muito
assertivamente refere o amigo professor António Rodrigues Assunção, no Notícias
da Covilhã, ergueu-se ali “um mastodôntico edifício habitacional”, evocando
ainda “os anos 1920-1930 da criação nesta cidade de uma Comissão de Iniciativa
Turística, embrião da futura Região de Turismo da Serra da Estrela”. Essa
evocação levou-me a trazer à memória alguns traços da história deste concelho
naquele longínquo período.
Não se pode confirmar, com base em
dados positivamente seguros, a existência da indústria de lanifícios na Covilhã
durante a dominação romana. Admitir que os pascigos da Serra da Estrela
alimentavam ovelhas e que a lã deu origem a uma indústria é mera conjetura, sem
fundamento histórico sólido. As selvas que então revestiam os ínvios
desfiladeiros da serra mal podiam oferecer passagem ou pastos adequados à
ovelha. Se algum animal doméstico poderia aventurar-se, sob vigilância humana,
pelos pascigos serranos, seria a cabra – pela profusão de pastos adequados à
sua voracidade, bem como pela sua agilidade e robustez. E como os romanos
utilizavam o pelo da cabra para tecer cordas e fabricar tecidos grosseiros com
que cobriam as tendas de campanha, é plausível afirmar que fundaram a Covilhã
na Corredoura para aí estabelecerem fábricas de cordas e tecidos feitos com
pelo de cabra.
Foi, porém, durante a ocupação muçulmana
da Península que, com maior probabilidade, se fixou na Covilhã a indústria de
lanifícios. O mouro inventou o pisão mecânico para esta indústria – denominado
na Covilhã maceira – que aqui se utilizou durante muitos séculos. Nas
ribeiras da Degoldra e da Carpinteira existiam numerosos pisões antiquíssimos, tão
antigos como moinhos e azenhas.
O pisoamento do tecido de lã tem
por finalidade feltrá-lo. O feltro começa a preparar-se no cardar da lã, de onde
se produz o fio com que se urde e se tece o artefacto. É o feltro a pedra de
toque que permite aquilatar a superioridade da lã, sendo a sua capacidade de
feltragem o que confere aos tecidos as qualidades isoladoras da temperatura,
fazendo desta fibra a matéria-prima mais adequada ao vestuário. Assim, o antigo
pisão mourisco existente nas ribeiras da Covilhã atesta que a indústria da lã
cardada é aqui, muitas vezes, secular.
A primeira Fábrica Real da
Covilhã, fundada por D. Pedro II segundo as ideias económicas do Conde da
Ericeira, situava-se na Ribeira da Carpinteira, no local da Fábrica Velha, que mais
tarde passou para Campos Melo & Irmão. A Fábrica Real Nova – hoje Universidade
da Beira Interior e outrora quartel militar (Regimento de Infantaria 21 e,
posteriormente, Batalhão de Caçadores 2) – foi fundada pelo Marquês de Pombal
junto da Ribeira da Degoldra. Ambas surpreenderam nos fabricos covilhanenses a tramilha,
que não era senão um derivado ou sucedâneo da preparação da lã penteada.
Predominantemente doméstica até
ao fim do primeiro quartel do século XIX, a indústria da Covilhã não era tão
absorvente que impedisse os seus habitantes de se integrarem coletivamente nos
grandes acontecimentos políticos, militares e marítimos que fizeram de Portugal
uma das nações mais gloriosas da Europa.
Um pequeno quadro histórico,
quase às origens da nacionalidade, revela bem a têmpera e o altíssimo ânimo dos
covilhanenses medievais, que já então se ocupavam no pacífico labor dos lanifícios.
D. Sancho I concedeu à Covilhã o seu primeiro foral em 1186.
Contudo, já antes dessa data o
concelho se encontrava organizado municipalmente, regendo-se pelos usos e
costumes do foral de Salamanca, tal como os concelhos vizinhos de Valhelhas,
Penamacor, Guarda e Alpedrinha.
D. Sancho I, encontrando a
Covilhã organizada consuetudinariamente, alterou-lhe o regime jurídico,
conferindo maiores regalias aos seus vizinhos. O amplíssimo território sob jurisdição
dos alcaides da Covilhã estendia-se desde o vértice da Serra da Estrela – onde,
no reinado de D. João VI, se edificou a Torre e onde Emídio Navarro sugeriu que
fosse erigida a estátua da Lusitânia – até às Portas de Rodão, já no Tejo, no
extremo sul. Essas variações na
organização municipal sucederam à medida que se iam redefinindo os contornos da
vasta área concelhia.
A vila de Belmonte tinha surgido
na área territorial do concelho da Covilhã, por continuidade com o povoado
romano de Centum-Cellae, surgido da exploração mineira do estanho.
Obviamente, nada daquilo que hoje
conhecemos existia então. Não havia tecnologias modernas nem prédios que
ensombrassem horizontes. O casario não incomodava e a paisagem regalava os
olhos. Era impensável recear a poluição atmosférica ou os males causados pelo
consumo de carvão. Existiam povoações, vinhedos, campos e montes; e não se
imaginavam as vastíssimas extensões de terreno que hoje acolhem painéis fotovoltaicos.
Fica, pois, esta reflexão sobre o
que todos nós vimos contribuindo para um futuro cada vez mais incerto na nossa vivência
sobre este planeta.
Para terminar, envio os meus
parabéns ao semanário FÓRUM pelos seus 14 anos a informar a Região, e também
pelos dois anos e meio da RÁDIO FÓRUM, que se têm vindo a rejuvenescer. Que
assim continuem por muito anos, acompanhando a transformação da sociedade em
que nos inserimos.
João de Jesus Nunes
(In “Jornal Fórum Covilhã”, de
04-12-2025)



