5 de dezembro de 2025

TRAÇOS DE VÁRIA HISTÓRIA DO CONCELHO DA COVILHÃ

 



Face às justas críticas que têm vindo a ser feitas à anterior governação covilhanense, no que toca ao panorama socioambiental que tem sido negligenciado, impôs-se-me uma breve retrospetiva da Covilhã de outros tempos. Na verdade, situações como a recente proliferação de prédios em altura, que beliscam profundamente a paisagem e retiram aos vizinhos a visão panorâmica que sempre tiveram – como sucede na Rua Manuel de Castro Martins, que foi meu ilustre professor – ilustram bem essa problemática. Como muito assertivamente refere o amigo professor António Rodrigues Assunção, no Notícias da Covilhã, ergueu-se ali “um mastodôntico edifício habitacional”, evocando ainda “os anos 1920-1930 da criação nesta cidade de uma Comissão de Iniciativa Turística, embrião da futura Região de Turismo da Serra da Estrela”. Essa evocação levou-me a trazer à memória alguns traços da história deste concelho naquele longínquo período.

Não se pode confirmar, com base em dados positivamente seguros, a existência da indústria de lanifícios na Covilhã durante a dominação romana. Admitir que os pascigos da Serra da Estrela alimentavam ovelhas e que a lã deu origem a uma indústria é mera conjetura, sem fundamento histórico sólido. As selvas que então revestiam os ínvios desfiladeiros da serra mal podiam oferecer passagem ou pastos adequados à ovelha. Se algum animal doméstico poderia aventurar-se, sob vigilância humana, pelos pascigos serranos, seria a cabra – pela profusão de pastos adequados à sua voracidade, bem como pela sua agilidade e robustez. E como os romanos utilizavam o pelo da cabra para tecer cordas e fabricar tecidos grosseiros com que cobriam as tendas de campanha, é plausível afirmar que fundaram a Covilhã na Corredoura para aí estabelecerem fábricas de cordas e tecidos feitos com pelo de cabra.

Foi, porém, durante a ocupação muçulmana da Península que, com maior probabilidade, se fixou na Covilhã a indústria de lanifícios. O mouro inventou o pisão mecânico para esta indústria – denominado na Covilhã maceira – que aqui se utilizou durante muitos séculos. Nas ribeiras da Degoldra e da Carpinteira existiam numerosos pisões antiquíssimos, tão antigos como moinhos e azenhas.

O pisoamento do tecido de lã tem por finalidade feltrá-lo. O feltro começa a preparar-se no cardar da lã, de onde se produz o fio com que se urde e se tece o artefacto. É o feltro a pedra de toque que permite aquilatar a superioridade da lã, sendo a sua capacidade de feltragem o que confere aos tecidos as qualidades isoladoras da temperatura, fazendo desta fibra a matéria-prima mais adequada ao vestuário. Assim, o antigo pisão mourisco existente nas ribeiras da Covilhã atesta que a indústria da lã cardada é aqui, muitas vezes, secular.

A primeira Fábrica Real da Covilhã, fundada por D. Pedro II segundo as ideias económicas do Conde da Ericeira, situava-se na Ribeira da Carpinteira, no local da Fábrica Velha, que mais tarde passou para Campos Melo & Irmão. A Fábrica Real Nova – hoje Universidade da Beira Interior e outrora quartel militar (Regimento de Infantaria 21 e, posteriormente, Batalhão de Caçadores 2) – foi fundada pelo Marquês de Pombal junto da Ribeira da Degoldra. Ambas surpreenderam nos fabricos covilhanenses a tramilha, que não era senão um derivado ou sucedâneo da preparação da lã penteada.

Predominantemente doméstica até ao fim do primeiro quartel do século XIX, a indústria da Covilhã não era tão absorvente que impedisse os seus habitantes de se integrarem coletivamente nos grandes acontecimentos políticos, militares e marítimos que fizeram de Portugal uma das nações mais gloriosas da Europa.

Um pequeno quadro histórico, quase às origens da nacionalidade, revela bem a têmpera e o altíssimo ânimo dos covilhanenses medievais, que já então se ocupavam no pacífico labor dos lanifícios. D. Sancho I concedeu à Covilhã o seu primeiro foral em 1186.

Contudo, já antes dessa data o concelho se encontrava organizado municipalmente, regendo-se pelos usos e costumes do foral de Salamanca, tal como os concelhos vizinhos de Valhelhas, Penamacor, Guarda e Alpedrinha.

D. Sancho I, encontrando a Covilhã organizada consuetudinariamente, alterou-lhe o regime jurídico, conferindo maiores regalias aos seus vizinhos. O amplíssimo território sob jurisdição dos alcaides da Covilhã estendia-se desde o vértice da Serra da Estrela – onde, no reinado de D. João VI, se edificou a Torre e onde Emídio Navarro sugeriu que fosse erigida a estátua da Lusitânia – até às Portas de Rodão, já no Tejo, no extremo sul.  Essas variações na organização municipal sucederam à medida que se iam redefinindo os contornos da vasta área concelhia.  

A vila de Belmonte tinha surgido na área territorial do concelho da Covilhã, por continuidade com o povoado romano de Centum-Cellae, surgido da exploração mineira do estanho.

Obviamente, nada daquilo que hoje conhecemos existia então. Não havia tecnologias modernas nem prédios que ensombrassem horizontes. O casario não incomodava e a paisagem regalava os olhos. Era impensável recear a poluição atmosférica ou os males causados pelo consumo de carvão. Existiam povoações, vinhedos, campos e montes; e não se imaginavam as vastíssimas extensões de terreno que hoje acolhem painéis fotovoltaicos.

Fica, pois, esta reflexão sobre o que todos nós vimos contribuindo para um futuro cada vez mais incerto na nossa vivência sobre este planeta.

Para terminar, envio os meus parabéns ao semanário FÓRUM pelos seus 14 anos a informar a Região, e também pelos dois anos e meio da RÁDIO FÓRUM, que se têm vindo a rejuvenescer. Que assim continuem por muito anos, acompanhando a transformação da sociedade em que nos inserimos.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

 

                                  

 

(In “Jornal Fórum Covilhã”, de 04-12-2025)

4 de dezembro de 2025

COVILHÃ – UMA HISTÓRIA DE LÃ, FRONTEIRAS, IDENTIDADE E A SUA UNIVERSIDADE


 

A história da Covilhã é inseparável da lã. Desde tempos imemoriais, entre ribeiras encaixadas e encostas agrestes da Serra da Estrela, este território desenvolveu uma ligação profunda à indústria têxtil, que moldou a sua economia, a sua organização social e até a sua paisagem humana. Embora não existam provas definitivas de produção têxtil na época romana, a tradição industrial começou a ganhar contornos mais sólidos durante a ocupação muçulmana, período em que os mouros introduziam o pisão mecânico – a então chamada maceira – utilizada durante séculos nas ribeiras da Degoldra e da Carpinteira.

Estas oficinas de pisões, movidas pela força hidráulica e dedicadas ao feltramento da lã, testemunhavam uma atividade que, entre cardar, fiar, tecer e pôr ao pisão, elevou a Covilhã a um dos mais importantes centros têxteis da Península. Mais tarde, com a instalação da Fábrica Real fundada por D. Pedro II e, posteriormente, da Fábrica Real Nova, criada pelo Marquês de Pombal, consolidava-se uma tradição que marcava gerações.

Paralelamente ao desenvolvimento económico, a Covilhã afirmava-se como um concelho dinâmico e com forte sentido comunitário. O seu primeiro foral, concedido por D. Sancho I em 1186, não criou uma estrutura administrativa do nada; veio antes reconhecer e organizar uma autonomia que já existia, herdade dos usos e costumes de Salamanca. Essa identidade municipal foi reforçada quando o modelo de Salamanca foi substituído pelo de Ávila, ampliando direitos e deveres dos seus habitantes.

O território concelhio era vastíssimo, estendendo-se da Torre da Serra da Estrela até ao Tejo, pelas Portas de Ródão. Incluía áreas que, por iniciativa régia e pela ação dos próprios alcaides, deram origem a novas povoações, como Sortelha, fundada após concessão de terras por pedido de D. Sancho I. Já Belmonte, surgida do antigo Centum-Cellas, manteve durante longos anos uma relação jurisdicional particular: embora sob influência da Mitra de Coimbra, as suas decisões judiciais continuavam a subir em grau para os juízes da Covilhã.

Mas a força do concelho não residia apenas na administração. Os covilhanenses participaram ativamente em momentos cruciais da história nacional: da jornada de Ceuta aos levantamentos contra Filipe IV, passando pela defesa das suas fronteiras medievais. A Covilhã, embora dedicada à produção de lanifícios, nunca deixou de erguer a bandeira da soberania e da justiça quando necessário.

É neste contexto que surgem os conflitos com os Templários de Castelo Branco, que procuraram alargar os seus domínios, impondo portagens abusiva aos munícipes da Covilhã. O choque culminou num combate na zona da atual Póvoa de Rio de Moinhos, onde a Covilhã saiu vitoriosa. A arbitragem posterior, registada em 1230 no Mosteiro de Santa Maria de Ozezar, viria a confirmar que o concelho covilhanense tinha razão na defesa dos seus limites.

Assim se desenha uma Covilhã que não é apenas a “cidade dos lanifícios”, mas uma terra de autonomia, ousadia e memória. Uma comunidade que ao longo dos séculos, soube conjugar engenho, trabalho e resistência – ingredientes essenciais para construir uma identidade que resiste às intempéries do tempo.

A Covilhã, outrora denominada A Manchester Portuguesa, transformou-se profundamente nas últimas décadas. Sem perder a herança industrial que marcou a sua identidade – visível nas antigas fábricas, nas ribeiras e na memória operária – a cidade reinventou-se como um polo de conhecimento, inovação e tecnologia.

Hoje, a Covilhã é amplamente reconhecida como cidade do saber, graças ao papel decisivo da Universidade da Beira Interior (UBI). A UBI trouxe dinamismo juvenil, investigação de ponta, novos cursos e centros de estudo, impulsionando áreas como a saúde, aeronáutica, engenharias, artes e ciências sociais. Esta presença universitária revitalizou a economia local, a cultura e a vida urbana, tornando a Covilhã mais cosmopolita, criativa e aberta ao futuro.

Assim, a Covilhã contemporânea é uma cidade que une tradição e modernidade: honra o passado dos lanifícios, mas afirma-se cada vez mais como território de conhecimento, inovação e oportunidades para toda a região.

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

 

 

(In “O Olhanense”, de 01-12-2025)