3 de outubro de 2025

ENTRE O “LIXO” E O PRESTÍGIO: A PARADOXAL VIAGEM DE PORTUGAL NOS RATINGS


 

Somos um país de brandos costumes. Entusiasmamo-nos com a efusão daqueles dias que não afetam diretamente as nossas vidas. Apesar do desalento e da desilusão provocados pela terrível devastação dos fogos, os pesadelos acabam por passar e os sonhos voltam. Mas nem todos querem ou podem renascer das cinzas.

Já não são só as alterações climáticas a causarem preocupação acrescida. É o homem que não se preocupa – não apenas consigo, mas também com os vindouros – mesmo estando à beira da catástrofe.

Em 2011, Portugal foi sacudido por uma expressão que feriu o nosso orgulho coletivo: as agências de rating internacionais classificaram a dívida soberana do país como “lixo”. Também eu manifestei a minha indignação, na comunicação social, quando a Moody’s colocou Portugal naquela situação. Reporto-me a um artigo de 13-07-2011, publicado no Notícias da Covilhã, onde escrevi:

“E, nesta lixadela, vale mais mandá-los às malvas, ou mais propriamente, para o rating que os parta!”.

E mais adiante:

 “É em plena época estival que vem uma agência de rating do Pacífico, e também do Atlântico, deixar-nos lixados com a sua ‘oferta’ de nível de lixo, pelo que apetece dizer: Que se lixem! Ou mesmo, ide-vos lixar!”

De repente, a palavra usada no quotidiano para designar o que não tem valor passou a definir a confiança dos mercados em nós. Era o tempo da intervenção externa, da troika, da austeridade dura, da emigração forçada de milhares de jovens qualificados. O país sentia-se diminuído, olhado de fora como um território pouco credível para investir.

Paradoxalmente, esse mesmo Portugal é hoje elogiado pelas mesmas agências, que subiram a classificação da nossa dívida para patamares de confiança. A economia apresenta indicadores de robustez, o défice orçamental tornou-se excedente em certos momentos, a dívida pública recua timidamente em percentagem do PIB e as exportações, o turismo e setores inovadores ganham novo fôlego. O país que era “lixo” é agora considerado seguro, estável, recomendável.

Mas a pergunta que se impõe é inevitável: mudou assim tanto Portugal?

Se olharmos para as ruas, percebemos que a vida das famílias continua marcada por salários baixos, habitação proibitiva para jovens e classes médias, serviços públicos sob pressão e uma perceção generalizada de desigualdade. A macroeconomia sobe de patamar. Mas a microeconomia – a vida real de quem conta cada euro no final do mês – nem sempre acompanha.

Este paradoxo é revelador: os ratings medem a confiança dos mercados financeiros, não a felicidade das pessoas. O país pode estar melhor visto lá fora, sem que isso signifique que os cidadãos sintam esse progresso no bolso ou no dia a dia. Ainda assim, não devemos menosprezar a diferença: ter a confiança dos mercados significa juros mais baixos, dívida mais barata, mais margem para investir. É um círculo virtuoso que pode – se bem aproveitado – traduzir-se em benefícios concretos para a sociedade.

Em 2011, Portugal era o retrato da desconfiança; em 2025, é a imagem de uma recuperação reconhecida. Entre o “lixo” e o prestígio decorre a mesma realidade nacional: um povo resistente, capaz de se reinventar, mas que ainda espera que as estatísticas do crescimento se transformem em qualidade de vida efetiva.

Talvez este seja o verdadeiro desafio para o futuro: não apenas sermos classificados como recomendáveis nos mercados, mas sobretudo sermos reconhecidos como um país onde vale a pena viver, trabalhar e sonhar.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “O Olhanense”, de 01-10-2025)

2 de outubro de 2025

AUTÁRQUICAS EM MOVIMENTO: AMBIÇÕES, ESTRATÉGIAS E O PODER LOCAL


 

À medida que se aproximam as eleições autárquicas, o país enche-se de cartazes, slogans ambiciosos e promessas renovadas – muitas vezes, apenas recicladas. Multiplicam-se candidatos, todos convictos de possuir a chave para o desenvolvimento local.

Para uns, este é o momento maior da democracia de proximidade; para outros, com natural ceticismo, não passa de um desfile de rostos sorridentes e frases feitas, atrás dos quais se pode esconder o mesmo enredo de sempre – um palco de vaidades e estratégias pessoais, onde os eleitores acabam muitas vezes reduzidos a plateia, em vez de protagonistas.

Curioso é notar que alguns autarcas, impossibilitados de renovar o mandato nos seus concelhos, optam por se candidatar noutras paragens. A geografia política transforma-se, assim, num tabuleiro de xadrez em que o essencial é não perder o lugar de topo. Trocam-se freguesias por cidades, concelhos por vilas, mas permanece a ambição de se manter na ribalta – quase como quem muda de camisola para não sair do jogo.

Não falta legitimidade a quem deseja continuar a servir a causa pública. Contudo, esta “dança de cadeiras” levanta questões inevitáveis: trata-se de vocação ou de carreira? De serviço ou de poder? Em ano de eleições, o eleitorado, tantas vezes esquecido entre mandatos, volta a ser cortejado. Entre promessas e discursos inflamados, cabe a cada cidadão separar o trigo do joio, distinguindo quem de facto se compromete com a sua terra de quem apenas procura mais um degrau na escalada política.

Entre mandatos, o povo é frequentemente esquecido. Mas, quando chega setembro ou outubro, voltam todos a bater-lhe à porta – com um sorriso ensaiado e a mão estendida.

Por isso, é ao a cidadão – o único que detém, verdadeiramente, a chave da mudança – que cabe avaliar com rigor quem se apresenta. É preciso olhar para além dos cartazes, ouvir para lá das promessas e, sobretudo, perceber quem tem obra feita e quem vive apenas de ambição.

A democracia sustenta-se em escolhas conscientes e informadas. As autárquicas são um ato de confiança. Não nos deixemos enganar pela espuma dos dias nem pelo marketing político. No fim, a força da democracia não reside nas cadeiras que alguns disputam, mas na lucidez com que o povo escolhe quem nelas se senta.

Que estas eleições sirvam, acima de tudo, para reforçar a voz dos cidadãos – e não para alimentar vaidades ou perpetuar jogos de poder mais do que alimentar vaidades ou perpetuar jogos de poder. Porque  o verdadeiro protagonista deveria ser sempre o povo: aquele que, em silêncio, decide o rumo das suas terras e confia, a cada quatro anos, que os eleitos honrem o peso do voto que lhes foi dado.

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In Jornal “Cinco Quinas”, Sabugal, de outubro 2025)

18 de setembro de 2025

ELEIÇÕES AUTÁRQUICAS: A DANÇA DAS CADEIRAS POLÍTICAS

 

À medida que se aproximam as eleições autárquicas, o país veste-se de cartazes, slogans ambiciosos e promessas renovadas – muitas vezes, apenas recicladas. Multiplicam-se candidatos, cada um mais convicto do que o outro de possuir a chave para o desenvolvimento local.

Há quem veja este momento como a festa da democracia local; outros, com um certo ceticismo, assistem ao desfile de rostos sorridentes e frases feitas, perguntando-se se, por trás de tanta cor e otimismo, não se esconde o mesmo enredo de sempre, num palco de vaidades e estratégias pessoais, onde os eleitores se veem mais como plateia do que como protagonistas.

Curioso é notar que, entre tantos candidatos, alguns, já sem possibilidade de renovar o mandato no seu concelho, decidem aventurar-se em novas praças. A geografia política parece, assim, um tabuleiro de xadrez onde o importante é não perder o lugar de topo. Trocam-se freguesias por cidades, concelhos por vilas, mas permanece a ambição de se manter na ribalta.

Trocam-se concelhos como quem troca de camisola – mas como o mesmo objetivo: não perder o poder

Não que falte legitimidade a quem deseja continuar a servir a causa pública. Porém, esta “dança de cadeiras” levanta questões inevitáveis: trata-se de vocação ou de carreira? De serviço ou de poder? Em ano de eleições, o eleitorado, tantas vezes esquecido entre mandatos, volta a ser cortejado. E, entre promessas e discursos inflamados, cabe a cada cidadão separar o trigo do joio, distinguir quem de facto se compromete com a terra de quem apenas procura mais um degrau na escalada política.

Curioso é o número de candidatos dispostos a tudo para manter o “lugar de topo”. Até que ponto esta mobilidade reflete vontade de servir, ou apenas medo de desaparecer dos holofotes?

Entre mandatos, o eleitorado parece esquecido. Mas, quando chega setembro ou outubro, todos voltam a bater à porta do povo, com um sorriso treinado e uma mão estendida.

Cabe, por isso, a cada cidadão – o único que tem, de facto, a chave da mudança – avaliar com rigor quem se apresenta. Olhar para além dos cartazes, ouvir para lá das promessas e, sobretudo, perceber quem tem trabalho feito e quem vive apenas de ambição.

A democracia vive da escolha consciente e informada. As autárquicas são um ato de confiança. Que não nos deixemos levar pela espuma dos dias nem pelo marketing político. Porque, no final, a verdadeira força da democracia não está nas cadeiras que alguns disputam, mas na lucidez com que o povo escolhe quem se senta nelas.

Que estas eleições autárquicas sirvam, então, para reforçar a voz dos cidadãos, mais do que alimentar vaidades ou perpetuar jogos de poder. Porque, no fim, o verdadeiro protagonista deveria ser sempre o povo – aquele que, em silêncio, decide o rumo das suas terras e confia, a cada quatro anos, que os eleitos honrem o peso do voto que lhes foi dado.

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “O Olhanense”, de 15-09-2025)

17 de setembro de 2025

A POLÍTICA EM ROTAÇÃO: REFLEXÕES SOBRE AS ELEIÇÕES AUTÁRQUICAS


 

À medida que se aproximam as eleições autárquicas, o país enche-se de cartazes, slogans ambiciosos e promessas renovadas – muitas vezes, apenas recicladas. Multiplicam-se candidatos, cada um mais convicto do que o outro de possuir a chave para o desenvolvimento local.

Para uns, este é o momento alto da democracia de proximidade; para outros, com um certo ceticismo, não passa de um desfile de rostos sorridentes e frases feitas. Perguntam-se se, por trás de tanta cor e otimismo, não estará o mesmo enredo de sempre, num palco de vaidades e estratégias pessoais, onde os eleitores são tratados mais como plateia do que como protagonistas.

É curioso notar que, entre tantos candidatos, alguns impossibilitados de renovar o mandato no seu concelho, decidem aventurar-se em novas praças. A geografia política transforma-se, assim, num tabuleiro de xadrez onde o essencial parece ser não perder o lugar de destaque. Trocam-se freguesias por cidades, concelhos por vilas, mas a ambição mantém-se: continuar na ribalta.

Trocam-se concelhos como quem troca de camisola – sempre com o mesmo objetivo: não largar o poder.

Nada há de ilegítimo em quem deseja continuar a servir a causa pública. Contudo, esta “dança de cadeiras” levanta inevitáveis questões: trata-se de vocação ou de carreira? De serviço ou de poder? Em ano de eleições, o eleitorado, tantas vezes esquecido entre mandatos, volta a ser cortejado. Entre promessas e discursos inflamados, cabe a cada cidadão separar o trigo do joio, distinguindo quem de facto se compromete com a terra de quem apenas procura mais um degrau na escalada política.

A quantidade de candidatos dispostos a tudo para manter o “lugar de topo” é reveladora. Até que ponto esta mobilidade traduz genuína vontade de servir ou apenas medo de desaparecer dos holofotes?

Durante os mandatos, o eleitorado parece cair no esquecimento. Mas quando chega setembro ou outubro, todos regressam às ruas, de sorriso treinado e mão estendida, à procura de votos.

Por isso, cabe a cada cidadão – o único que detém, de facto, a chave da mudança – avaliar com rigor quem se apresenta. Olhar para além dos cartazes, ouvir para lá das promessas e, sobretudo, perceber quem tem trabalho feito e quem vive apenas de ambições pessoais.

A democracia vive de escolhas conscientes e informadas. As autárquicas são um ato de confiança. Não nos deixemos levar pela espuma dos dias nem pelo marketing político. No final, a verdadeira força da democracia não está nas cadeiras disputadas, mas na lucidez com que o povo decide quem se senta nelas.

Que estas eleições autárquicas sirvam, assim, para reforçar a voz dos cidadãos, em vez de alimentar vaidades ou perpetuar jogos de poder. Porque, no fim, o verdadeiro protagonista deveria ser sempre o povo – aquele que, em silêncio, traça o destino das suas terras e confia, a cada quatro anos, que os eleitos honrem o peso do voto que lhes foi dado.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “Jornal Fórum Covilhã”, de 17-09-2025)

 

 

 

 

11 de setembro de 2025

DOLOROSA MISSÃO NUM PAÍS A ARDER



 

Mais uma vez, a Covilhã veste-se de luto. Mais uma vez, um bombeiro não regressou ao quartel, à família, aos amigos. A tragédia aconteceu a caminho de um incêndio, tal como em cinco anteriores casos que narrei no meu livro Vida e Obra dos Bombeiros Voluntários da Covilhã, publicado em 2004.

Há 12 anos senti a mesma dor ao escrever um artigo sob o falecimento de outro valoroso combatente pela paz, apanhado pelas chamas, que intitulei Mártires pela Paz, recordando então os que já tinham tombado.

Daqui se conclui que o perigo não está apenas nas chamas que consomem florestas e casas, mas também em cada quilómetro percorrido, em cada estrada, em cada instante em que se parte de farda vestida, com a missão de proteger e salvar.

Cada vez que a sirene ecoa na cidade, sabemos que há vidas em risco, que há património e memórias ameaçados. Mas, para os nossos bombeiros, cada toque da sirene é também um salto para o desconhecido. Partem sempre com coragem, conscientes de que podem não regressar. E quando não regressam, a dor espalha-se como um fogo que nenhuma água consegue apagar.

Não é a primeira vez que a Covilhã chora os seus soldados da paz. Já outros tombaram no combate aos incêndios, já outros se ofereceram em sacrifício, sem nunca recuar perante o dever.

Quando o fumo se levanta ou o socorro é solicitado, nenhum homem ou mulher das Corporações de Bombeiros deixa de se aprontar para ajudar o seu semelhante. E fá-lo sem vaidade, sem esperar recompensa, mas apenas com o sentido maior da expressão “amor ao próximo”.

Assim, muitos heróis integram já a longa história dos Bombeiros Voluntários da Covilhã (BVC), instituição gloriosa que completou recentemente 150 anos de existência, marcada por inúmeras ações de valentia no salvamento de pessoas e bens.

Foram já muitos os covilhanenses – de raiz ou de coração, da cidade ou das aldeias – que viram a sua vida ou património salvos pelos bombeiros. Outros, infelizmente, não puderam ser poupados à força devastadora dos incêndios que, ano após ano, assolam o país e deixam um rasto de prejuízos, alguns irreparáveis.

Com a morte trágica de mais um valoroso elemento dos nossos BVC, ocorrida no domingo, 17 de agosto, Daniel Bernardo Agrelo, de 44 anos, casado e pai de um filho menor de 14, totalizam-se já oito mártires ao serviço desta associação que ostenta, com honra, as insígnias do Grau de Cavaleiro da Ordem Militar da Torre e Espada, Valor, Lealdade e Mérito, atribuídas pelo Governo em 03-02-1928.

A primeira vítima – Abílio Adelino Sousa, fundador dos BVC – perdeu a vida num fatídico domingo, 18 de fevereiro de 1883, durante um exercício.

O segundo mártir – Sebastião dos Santos Júlio, altamente condecorado por atos de bravura – faleceu num acidente de viatura, numa 5ª feira a 10 de setembro de 1931, quando se deslocava para um incêndio. Tinha já salvo oito pessoas no incêndio da Mineira, na noite de 14-06-1907, ato pelo qual foi distinguido com a Medalha de Prata de D. Maria II. Em janeiro de 1932, o Governo da República concedeu-lhe, a título póstumo, o Grau de Cavaleiro da Ordem Militar da Torre e Espada.

A terceira vítima – Mário Dias Tarouca – morreu na madrugada de 12 de abril de 1936 (domingo), cerca das 2 horas da manhã, em consequência de um desastre durante o incêndio da fábrica Manuel Lino Roseta.

As quarta, quinta e sexta vítimas mortais – António Miguel Vaz Marques, Ricardo Bruno de Jesus Cardona e Fernando Manuel Sousa Xistra, sucumbiram na sexta-feira, 2 de agosto de 1996, no trágico acidente aéreo do helicóptero que combatia incêndios florestais na Covilhã.

No feriado de 15 de agosto de 2013 (quinta-feira), a Covilhã perdeu mais um bombeiro, Pedro Miguel de Jesus Rodrigues, apanhado pelas chamas no sul do concelho, sem conseguir fugir.

Hoje, com dor renovada, vejo-me obrigado a acrescentar mais um nome a essa galeria de heróis.

O país continua a arder, ano após ano. Continuamos a assistir ao flagelo que destrói não apenas árvores, mas aldeias, lares, sonhos e, tantas vezes, vidas humanas. Até quando aceitaremos que este sofrimento faça parte do calendário de verão? Até quando permitiremos a floresta desordenada, a prevenção esquecida, e os nossos bombeiros lançados para a frente da batalha sem todas as condições que merecem?

A morte de um bombeiro não pode ser apenas notícia de um dia. Não pode ser apenas uma lágrima que cai e logo se seca. Honrar os nossos bombeiros é muito mais: é preservar a memória dos que tombaram, é cuidar dos que continuam vivos e ativos, é trabalhar para que estas tragédias sejam cada vez menos frequentes.

Hoje, mais um Mártir da Esperança se junta à história dos Bombeiros da Covilhã. Partiu demasiado cedo, mas deixou-nos uma herança de coragem e de serviço. Que o seu nome não se apague. Que o seu exemplo não se esqueça.

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

 

(In “Jornal Fórum Covilhã”, de 09-09-2025)

5 de setembro de 2025

Volta a Portugal: Memórias e Emoções de Ontem e de Hoje

 

No final de uma época futebolística que deu brado e provocou acesas discussões entre adeptos de diferentes clubes, paradoxalmente inicia-se uma nova fase desportiva, com a entrada para um novo campeonato – a época 2025/2026 – carregada de expectativas e emoções.

Com o calor de verão, regressa o ciclismo vibrante: a Volta a Portugal em Bicicleta, ou simplesmente “a Volta”. Está já a caminhar para o centenário, pois a 1ª edição realizou-se  em 1927.

A comunicação social esteve na origem da sua organização, numa parceria entre os jornais Diário de Notícias e Os Sports, inspirando-se no Tour de France, criado pelo jornal L’ Auto em 1903.

A Volta surgiu depois do Giro d’ Itália, organizado pela La Gazzetta dello Sport em 1909, e antes da Vuelta a España, criada pelo jornal Informaciones em 1935. Tanto a Volta a Portugal como o Tour se distinguem de outras provas pela forma como, nos seus primeiros traçados, seguiram de perto a fronteira territorial dos respetivos países, acompanhando os seus contornos durante várias décadas.

A primeira edição da Volta iniciou-se a 26 de abril de 1927 e percorreu o país durante 20 dias, num percurso de 2000 km, distribuídos por 18 etapas. Terminou com uma receção apoteótica em Lisboa. O vencedor foi António Augusto de Carvalho, do Carcavelos, que inaugurou a galeria de campeões da chamada “Prova Rainha” do ciclismo português.

Na adolescência como tantos portugueses, ganhei entusiasmo por esta competição. Entre as figuras marcantes da época estavam Alves Barbosa, do Sangalhos, e Ribeiro da Silva, do Académico do Porto – este último falecido tragicamente num acidente de motorizada em 9 de abril de 1958.

Nos anos 60, o F. C. Porto destacou-se com ciclistas como Carlos Carvalho, Sousa Cardoso, Mário Silva e José Pacheco. Mas em 1963 o título foi para João Roque, do Sporting CP, e, em 1965, para Peixoto Alves, do Benfica.

Em 1967, pela primeira vez, a Volta foi conquistada por um estrangeiro: Antoine Houbrechts, da Flandria.  

Na década de 70 surgiu um nome incontornável do ciclismo português: Joaquim Agostinho, do Sporting CP, vencedor das edições de 1970, 1971 e 1972. Outros corredores de relevo seguiram-se, como Fernando Mendes e Firmino Bernardino, do Benfica.

A partir dos anos 80, surgiram novas figuras entre as quais Marco Chagas, que venceu em 1982, 1983, 1985 e 1986, representando o F. C. Porto e, mais tarde, o Sporting C. P.

Houve também nomes que marcaram várias edições, mas nunca conseguiram vencer a geral, como Jorge Corvo, do Ginásio de Tavira, e, já no século XXI, Cândido Barbosa, da Liberty Seguros.

Na minha memória, permanece viva a edição de 1962. A 12 de julho, um domingo, eu, o meu irmão e alguns amigos da Covilhã partimos para as Penhas da Saúde, sem autorização dos pais, para assistir ao final da etapa. Seguindo atalhos pela serra, encontrámos um ambiente vibrante: público entusiasta, caravanas promocionais, bonés, brindes e a expectativa pela chegada dos heróis da estrada.

Nesse dia, o grande protagonista foi João Centeio, do Águias de Alpiarça. Na 12ª etapa, de 175 Km entre Portalegre e Penhas da Saúde, chegou com larga vantagem – cerca de 30 minutos sobre o segundo classificado, segundo o Diário de Notícias de 11 de agosto de 2005. “Quando lá chegou, atirou-se para a piscina”.  Segundo testemunhos, arrancou na “Varanda dos Carqueijais” – cerca de cinco quilómetros após o início da subida, onde a inclinação chega a 13%   – e deixou todos para trás. Terminou com 11 minutos de vantagem sobre o segundo. Apesar da façanha, Centeio nunca venceu uma Volta: em 1962 terminou apenas em 31º, devido a várias quedas. Este carismático ciclista já faleceu. * Mas não desapareceu do imaginário das gentes da serra.

O vencedor da 25ª Volta, em 1962, foi José Pacheco (F. C. Porto), seguido de Peixoto Alves (Benfica) e Jorge Corvo (Ginásio de Tavira). O Prémio da Montanha foi para Mário Silva (F. C. Porto).

Infelizmente, nesse mesmo dia, no regresso à Covilhã, um jovem covilhanense, José Filipe Carriço de Sousa, foi atropelado por um automóvel, falecendo no local.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

*Informação telefónica obtida em 09/08/2025, junto do Clube Desportivo Águias de Alpiarça, por D. Jessica (Secretaria).

(In “O Olhanense”, de 01-09-2025)


4 de setembro de 2025

UM ARTIGO QUE NÃO GOSTARIA DE ESCREVER

 

Mais uma vez, a Covilhã veste-se de luto. Mais uma vez, um bombeiro não regressou ao quartel, à família, aos amigos. A tragédia aconteceu a caminho de um incêndio, tal como em cinco anteriores casos que narrei no meu livro Vida e Obra dos Bombeiros Voluntários da Covilhã.

Daqui se conclui que o perigo não está apenas nas chamas que consomem florestas e casas, mas também em cada quilómetro percorrido, em cada estrada, em cada instante em que se parte de farda vestida, com a missão de proteger e salvar.

Cada vez que a sirene ecoa na cidade, sabemos que há vidas em risco, que há património e memórias ameaçados. Mas, para os nossos bombeiros, cada toque da sirene é também um salto para o desconhecido. Partem sempre com coragem, conscientes de que podem não regressar. E quando não regressam, a dor espalha-se como um fogo que nenhuma água consegue apagar.

Muitos heróis integram já a longa história dos Bombeiros Voluntários da Covilhã (BVC), instituição gloriosa que completou recentemente 150 anos de existência, marcada por inúmeras ações de valentia no salvamento de pessoas e bens.

Foram já muitos os covilhanenses – de raiz ou de coração, da cidade ou das aldeias – que viram a sua vida ou património salvos pelos bombeiros. Outros, infelizmente, não puderam ser poupados à força devastadora dos incêndios que, ano após ano, assolam o país e deixam um rasto de prejuízos, alguns irreparáveis.

Com a morte trágica de mais um valoroso elemento dos nossos BVC, ocorrida no domingo, 17 de agosto, Daniel Bernardo Agrelo, de 44 anos, casado e pai de um filho menor de 14, totalizam-se já oito mártires ao serviço desta associação.

A primeira vítima – Abílio Adelino Sousa, fundador dos BVC – perdeu a vida num fatídico domingo, 18 de fevereiro de 1883, durante um exercício.

O segundo mártir – Sebastião dos Santos Júlio, altamente condecorado por atos de bravura – faleceu num acidente de viatura, numa 5ª feira a 10 de setembro de 1931, quando se deslocava para um incêndio. Tinha já salvo oito pessoas no incêndio da Mineira, na noite de 14-06-1907.

A terceira vítima – Mário Dias Tarouca – morreu na madrugada de 12 de abril de 1936 (domingo), cerca das 2 horas da manhã, em consequência de um desastre durante o incêndio da fábrica Manuel Lino Roseta.

As quarta, quinta e sexta vítimas mortais – António Miguel Vaz Marques, Ricardo Bruno de Jesus Cardona e Fernando Manuel Sousa Xistra, sucumbiram na sexta-feira, 2 de agosto de 1996, no trágico acidente aéreo do helicóptero que combatia incêndios florestais na Covilhã.

No feriado de 15 de agosto de 2013 (quinta-feira), a Covilhã perdeu mais um bombeiro, Pedro Miguel de Jesus Rodrigues, apanhado pelas chamas no sul do concelho, sem conseguir fugir.

O país continua a arder, ano após ano. Continuamos a assistir ao flagelo que destrói não apenas árvores, mas aldeias, lares, sonhos e, tantas vezes, vidas humanas. Até quando aceitaremos que este sofrimento faça parte do calendário de verão? Até quando permitiremos a floresta desordenada, a prevenção esquecida, e os nossos bombeiros lançados para a frente da batalha sem todas as condições que merecem?

A morte de um bombeiro não pode ser apenas notícia de um dia. Não pode ser apenas uma lágrima que cai e logo se seca. Honrar os nossos bombeiros é muito mais: é preservar a memória dos que tombaram, é cuidar dos que continuam vivos e ativos, é trabalhar para que estas tragédias sejam cada vez menos frequentes.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “Jornal do Fundão”, de 04-09-2025)