4 de março de 2010

KUTNÁ HORA



Demasiadas notícias do enfado político. Arrasadoras umas, estranhas outras. Não alheias da conversa comum. Levam-nos a vociferar, em nevralgias com direito à indignação, do que se sabe e do que se desconhece. Mas mormente de quem nos vilipendia, engana, desprestigia.
As pedradas de arremesso não chegam aos ossos dos visados.
É pungente o pressentir quem mente, o reconhecer quem encobre, o surgir de tantos meandros sustentadores da morosidade, fazendo perder no tempo a culpabilidade do infractor, e o poder judicial a não conseguir transmitir a sua credibilidade.
Com este Inverno tão rigoroso, algumas vezes se ficou enregelado até aos ossos. Mesmo com alguns safanões, as zonas vertebrais de muitos senhores continuam incólumes de qualquer esforço, porque do seu trabalho só a sua mente dá sinal, na tentativa de ludibriar todos.
E se de ossos vamos continuando a falar, os mesmos pouco se comprimem para aqueles que, recostados no sofá, não sentem a parte nervosa a incomodar, já que na sua conta bancária os saldos engordam, em contraste com aqueles que os vêem limpos, porque do último bolso da sua samarra, ou sobretudo, já não há resto do que deixaram na praça.
De tantos “casos”, só uma ínfima percentagem dos infractores malhou com os ossos na choldra.
É que isto de falar de cadeia é um ultraje. Por isso, na mesma existem tarimbas para uns e “gabinetes” prisionais para que os de excepção possam ter os seus ossinhos mais reconfortados.
Passou o Carnaval. No dia seguinte, a 4.ª Feira de Cinzas –“ Lembra-te que és pó e em pó te hás-de tornar”, como se referia anteriormente nas citações bíblicas.
Independentemente da religiosidade de cada um, esta é uma certeza, uma verdade insofismável. Ainda que haja a preservação de alguns ossos, quer por mumificação, dos tempos ancestrais, quer por depósito tumular, com embalsamamento, como os do faraó Tutankhamon, dos Papas, Reis e outras figuras de mérito, isso não é para todos, optando muitos pela cremação.
São de mau gosto as fantásticas, tenebrosas e macabras “decorações” feitas com ossos humanos, em igrejas e capelas deste País e do estrangeiro. É uma falta de respeito pelo ser humano.
Quando visitei, em 1968, pela primeira vez, a Capela dos Ossos, em Évora, situada na Igreja de S. Francisco, construída no Séc. XVII, por iniciativa de três monges, fiquei triste por ver que, afinal, na minha perspectiva, se estava a “brincar” com os ossos humanos, “decorando” a capela com milhares de crânios, tíbias, vértebras e fémures de humanos, dispostos nas paredes, nas colunas e no tecto, em macabra arquitectura. E também lá estão os ossos, pendurados, de um bebé, no conjunto do seu corpo. Discordo destas exposições, mesmo tendo em conta que, no espírito dos criadores, foi a mensagem da transitoriedade da vida, tal como indica o aviso à entrada da capela: “Nós ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos”. Calculam-se em cerca de 5.000, provenientes dos cemitérios situados nas igrejas e conventos da cidade.
Fora de Évora, sabemos que também existem capelas dos ossos em Campo Maior, Faro, Silves, e noutras zonas do País, assim como por esse mundo fora.
A que mais me marcou, e que visitei em Agosto de 2006, na deslocação que fizemos de automóvel, de Praga para a capital austríaca, a cerca de 65 quilómetros da capital checa, foi a de Kutná Hora. Impressionante! Aterrador! Depois de procurarmos a estrada que nos levaria ao rumo certo, já que teimava em surgir a direcção de Brno, que não desejávamos, e não íamos munidos de GPS, poisamos para almoçar, sem que antes visitássemos, no coração da Boémia Central, a três quilómetros do centro da cidade, uma das mais macabras fantasias à face da terra – a capela de Todos os Santos, mais conhecida por Igreja dos Ossos, com toda a espécie de ossos, entre 40 e 70 mil. Segundo a revista “Fugas” (Público), de 23/01/2010, “a capela foi plantada no centro do cemitério desde que foi fundado, em 1278, com terra colhida em Golgotha, o sítio da crucificação de Cristo. Ou seja, o cemitério foi promovido a terra santa e toda a gente de Kutná Hora passou a elegê-lo para última morada. Depois veio a peste no século XIV, as não menos letais guerras hussitas no século seguinte e o exíguo recinto ficou a rebentar pelas costuras, com muitos cadáveres a descoberto. Primeiro o andar superior da capela e depois o seu subsolo foram então convertidos em armazém de ossos em excesso. (...) Há quatro enormes pilhas de ossos em forma de sinos nos quatro cantos da capela, do centro pende um monumental candelabro que integra todos os ossos do corpo humano, os tectos abobadados são decorados com grinaldas de caveiras. Para além dos depósitos onde milhares de ossos estão simplesmente empilhados, há muitos outros recriados para efeitos “artísticos”.
Todas estas figuras decorativas mais parecem ferir as regras do bom gosto e até do respeito pelos mortos.
Será que um dia os meus ossos podem servir para decorar uma qualquer capela ou objectos artísticos? Prefiro a cremação.




(In “Gazeta do Interior”, de 24/02/2010; “Notícias de Gouveia”, de 26/02/2010; “Notícias da Covilhã”, de 04/03/2010; e Jornal “Olhanense”, em 15/03/2010)

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