Um ano antes (15 de
junho de 1819) já o jovem estudante de Leis, Almeida Garrett, inseria, numa
nota a uns versos, no Porto, um dos seus ditos mais célebres: “Se na nossa
cidade, há muito quem troque o b por v, há muito pouco quem troque a honra pela
infâmia, e a liberdade pela servidão”. Parecia que os seus desabafos não caíam
em saco roto. Como que adivinhava.
O dia 24 de agosto de 1820, há precisamente 200 anos, era decisivo para
construção do Portugal contemporâneo. O derrube da monarquia absoluta e a
construção de um novo regime de monarquia constitucional.
Tal como aquando do 25 de Abril de 1974, também o sucesso do
pronunciamento militar se ficou a dever a uma cuidadosa preparação a cargo dos
magistrados e homens de negócio que integravam o Sinédrio, uma associação
política criada em janeiro de 1818. O respeitável magistrado Manuel Fernandes
Tomás foi o principal mentor deste movimento.
Havia que derrubar o antigo regime de privilégios, de interesses e de
formas de exercício do poder.
O medroso e indeciso Regente do Reino D. João, mais tarde D. João VI,
sentia-se bem no Brasil com a família, ausente desde o início das invasões
francesas em 1808. Do Brasil governava Portugal, tornando-se praticamente
Portugal uma sua colónia, ao invés do que na realidade deveria ser. Os seus
súbditos eram mal governados por uma regência na metrópole incapaz de acudir às
maiores urgências do Estado, onde não faltava a provocatória presença e
influência inglesa. Até hoje, em tempos de pandemia, sentimos alguma nefasta
ameaça britânica aos turistas que se querem deslocar ao nosso País. A ida de D.
João VI para o Brasil era o único caso do mundo de um rei instalado numa
colónia.
O que é certo é que D. João VI viu-se constrangido a regressar a Portugal,
após 14 anos de ausência do país. Deixava de ser monarca absoluto para passar a
ser rei constitucional por via da instituição de um governo provisório
mandatado para a preparação de eleições de Cortes Constituintes. E lá estava,
emocionado, o jovem Almeida Garrett, escrevendo: “A última hora da tirania
soou: o fanatismo, que ocupava a face da terra, desapareceu; o sol da liberdade
brilhou no nosso horizonte, e as derradeiras trevas do despotismo foram,
dissipadas por seus raios, sepultar-se no inferno”.
Mas o tímido D. João VI originava mais um momento crítico com a sua
permanência no Brasil após o restabelecimento da paz na Europa, não obstante os
britânicos enviarem uma frota para que regressasse a Portugal, mas a vontade de
contrariar o Governo de Londres poderia explicar as razões da sua permanência.
O centro efetivo dos domínios da Casa de Bragança era o Rio de Janeiro. Em 1815
D. João VI formaliza a criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve. O
segundo momento crítico ocorre com a Revolução de 1820, acabando por ser
forçado a regressar a Portugal, como já foi atrás referido. E, já depois da
Revolução, em 1824 passa pelo momento mais dramático com seu filho D. Miguel a
encabeçar um golpe militar com a deposição do pai e a prisão de muitos membros
da elite política. É nesta fase que castiga o filho e o envia para o exílio.
Regressa desse exílio dourado em 22 de fevereiro de 1828 para assumir a
regência do reino em nome de ser irmão D. Pedro (seu pai havia morrido dois
anos antes) e desde logo aproveitou a ocasião para escolher quem lhe fosse fiel
e desafeto à Carta, afastando todos os indesejáveis. Dissolveu a Câmara dos
Deputados e promoveu a sua aclamação como rei absoluto. A censura e a polícia
silenciavam os liberais e as prisões ficaram repletas. Muitos chefes militares
prestigiados como Saldanha e Vila Flor saíram do país. O silêncio liberal,
aparente, ia-se desfazendo como na noite de 30 de abril de 1828, com milhares
de portuenses, concentrados no Campo de Santo Ovídio a soltarem vivas a D.
Pedro, à Rainha e à Carta, em resposta à aclamação de D. Miguel. É que a
Revolução estaria a ser traída. Os liberais começavam a enfrentar as agruras do
exílio.
Em finais de agosto de 1828, um único ponto do território nacional
continuava no poder dos liberais: a Ilha Terceira. A sua resistência permitiu
que a Regência nomeada por D. Pedro em 15 de junho de 1829 instalasse o palácio
do governo em Angra, em março de 1830. Foi daqui que os liberais partiram à
conquista do Reino. Entre abril e agosto de 1831, foram tomadas todas as ilhas
dos Açores pelo exército liberal. Em fevereiro de 1832, D. Pedro chegou à
Terceira, nomeou um governo e concentrou-se na preparação do seu exército. Na
sua maioria constituído por militares e voluntários emigrados, conhecidos como
“os bravos do Mindelo”. No dia 8 de julho de 1832, a expedição liberal
desembarcou em Arnosa do Pampelido para, no dia seguinte, o exército de 7.500
bravos de D. Pedro entrar no Porto, e tomar o poder.
Não obstante as tentativas de golpe de estado, por D. Miguel, em 1824,
conhecido por Abrilada, que visava destituir o governo moderado, formado por D.
João depois do restabelecimento do absolutismo em 1823 (sendo este último
movimento conhecido por Vilafrancada que derrubara a 1ª Constituição
portuguesa, elaborada a partir do movimento iniciado na cidade do Porto, em 24
de agosto de 1820, como já referido), é derrotada definitivamente a causa
miguelista do ponto de vista militar em 1834. No entanto, apesar do exílio de
D. Miguel, a resistência ao liberalismo foi mantida até quase ao fim dos anos
de 1840. A Vilafrancada (1823) e a Abrilada (1824) ficaram como dois dos
momentos emblemáticos das dificuldades que o Liberalismo teria para se instalar
em Portugal.
Como curiosidade, para terminar, é feita uma referência numa peça
importante da exposição levada a efeito pela Câmara Municipal do Porto, de que
no livro de vereações onde se encontra a ata daquela edilidade, do dia 24 de
agosto de 1820, tem a particularidade de estar cheia de passagens rasuradas a
preto, uma intervenção que se ficou a dever aos partidários de D. Miguel após a reviravolta absolutista. Efetivamente,
qual não foi o meu espanto quando, nas pesquisas que efetuei na ata de 26 de
agosto de 1820 da Câmara Municipal da Covilhã (a mais próxima daquela data),
presidida pelo Juiz de Fora, José António Correia da Costa Pereira do Lago, de
difícil leitura, nada refere sobre a Revolta de 1820. Contudo, a ata seguinte,
datada de 8 de setembro de 1820 está toda danificada, rasurada e riscada em
todas as suas linhas, para ficar inutilizada, e ainda com riscos verticais,
pretos, em nove páginas seguidas. Seguem-se, com normalidade, mas com muita
dificuldade de leitura, quase impercetíveis, as atas da CMC de 16 e 19-09-1820,
onde nada consta sobre este acontecimento da História de Portugal.
(In "Jornal fórum Covilhã", de 09-09-2020)
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