9 de setembro de 2020

HÁ 200 ANOS O PRIMEIRO PASSO PARA EDIFICAR UM PORTUGAL MODERNO

 

Um ano antes (15 de junho de 1819) já o jovem estudante de Leis, Almeida Garrett, inseria, numa nota a uns versos, no Porto, um dos seus ditos mais célebres: “Se na nossa cidade, há muito quem troque o b por v, há muito pouco quem troque a honra pela infâmia, e a liberdade pela servidão”. Parecia que os seus desabafos não caíam em saco roto. Como que adivinhava.

O dia 24 de agosto de 1820, há precisamente 200 anos, era decisivo para construção do Portugal contemporâneo. O derrube da monarquia absoluta e a construção de um novo regime de monarquia constitucional.

Tal como aquando do 25 de Abril de 1974, também o sucesso do pronunciamento militar se ficou a dever a uma cuidadosa preparação a cargo dos magistrados e homens de negócio que integravam o Sinédrio, uma associação política criada em janeiro de 1818. O respeitável magistrado Manuel Fernandes Tomás foi o principal mentor deste movimento.

Havia que derrubar o antigo regime de privilégios, de interesses e de formas de exercício do poder.

O medroso e indeciso Regente do Reino D. João, mais tarde D. João VI, sentia-se bem no Brasil com a família, ausente desde o início das invasões francesas em 1808. Do Brasil governava Portugal, tornando-se praticamente Portugal uma sua colónia, ao invés do que na realidade deveria ser. Os seus súbditos eram mal governados por uma regência na metrópole incapaz de acudir às maiores urgências do Estado, onde não faltava a provocatória presença e influência inglesa. Até hoje, em tempos de pandemia, sentimos alguma nefasta ameaça britânica aos turistas que se querem deslocar ao nosso País. A ida de D. João VI para o Brasil era o único caso do mundo de um rei instalado numa colónia.

O que é certo é que D. João VI viu-se constrangido a regressar a Portugal, após 14 anos de ausência do país. Deixava de ser monarca absoluto para passar a ser rei constitucional por via da instituição de um governo provisório mandatado para a preparação de eleições de Cortes Constituintes. E lá estava, emocionado, o jovem Almeida Garrett, escrevendo: “A última hora da tirania soou: o fanatismo, que ocupava a face da terra, desapareceu; o sol da liberdade brilhou no nosso horizonte, e as derradeiras trevas do despotismo foram, dissipadas por seus raios, sepultar-se no inferno”.

Mas o tímido D. João VI originava mais um momento crítico com a sua permanência no Brasil após o restabelecimento da paz na Europa, não obstante os britânicos enviarem uma frota para que regressasse a Portugal, mas a vontade de contrariar o Governo de Londres poderia explicar as razões da sua permanência. O centro efetivo dos domínios da Casa de Bragança era o Rio de Janeiro. Em 1815 D. João VI formaliza a criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve. O segundo momento crítico ocorre com a Revolução de 1820, acabando por ser forçado a regressar a Portugal, como já foi atrás referido. E, já depois da Revolução, em 1824 passa pelo momento mais dramático com seu filho D. Miguel a encabeçar um golpe militar com a deposição do pai e a prisão de muitos membros da elite política. É nesta fase que castiga o filho e o envia para o exílio. Regressa desse exílio dourado em 22 de fevereiro de 1828 para assumir a regência do reino em nome de ser irmão D. Pedro (seu pai havia morrido dois anos antes) e desde logo aproveitou a ocasião para escolher quem lhe fosse fiel e desafeto à Carta, afastando todos os indesejáveis. Dissolveu a Câmara dos Deputados e promoveu a sua aclamação como rei absoluto. A censura e a polícia silenciavam os liberais e as prisões ficaram repletas. Muitos chefes militares prestigiados como Saldanha e Vila Flor saíram do país. O silêncio liberal, aparente, ia-se desfazendo como na noite de 30 de abril de 1828, com milhares de portuenses, concentrados no Campo de Santo Ovídio a soltarem vivas a D. Pedro, à Rainha e à Carta, em resposta à aclamação de D. Miguel. É que a Revolução estaria a ser traída. Os liberais começavam a enfrentar as agruras do exílio.

Em finais de agosto de 1828, um único ponto do território nacional continuava no poder dos liberais: a Ilha Terceira. A sua resistência permitiu que a Regência nomeada por D. Pedro em 15 de junho de 1829 instalasse o palácio do governo em Angra, em março de 1830. Foi daqui que os liberais partiram à conquista do Reino. Entre abril e agosto de 1831, foram tomadas todas as ilhas dos Açores pelo exército liberal. Em fevereiro de 1832, D. Pedro chegou à Terceira, nomeou um governo e concentrou-se na preparação do seu exército. Na sua maioria constituído por militares e voluntários emigrados, conhecidos como “os bravos do Mindelo”. No dia 8 de julho de 1832, a expedição liberal desembarcou em Arnosa do Pampelido para, no dia seguinte, o exército de 7.500 bravos de D. Pedro entrar no Porto, e tomar o poder.

Não obstante as tentativas de golpe de estado, por D. Miguel, em 1824, conhecido por Abrilada, que visava destituir o governo moderado, formado por D. João depois do restabelecimento do absolutismo em 1823 (sendo este último movimento conhecido por Vilafrancada que derrubara a 1ª Constituição portuguesa, elaborada a partir do movimento iniciado na cidade do Porto, em 24 de agosto de 1820, como já referido), é derrotada definitivamente a causa miguelista do ponto de vista militar em 1834. No entanto, apesar do exílio de D. Miguel, a resistência ao liberalismo foi mantida até quase ao fim dos anos de 1840. A Vilafrancada (1823) e a Abrilada (1824) ficaram como dois dos momentos emblemáticos das dificuldades que o Liberalismo teria para se instalar em Portugal.

Como curiosidade, para terminar, é feita uma referência numa peça importante da exposição levada a efeito pela Câmara Municipal do Porto, de que no livro de vereações onde se encontra a ata daquela edilidade, do dia 24 de agosto de 1820, tem a particularidade de estar cheia de passagens rasuradas a preto, uma intervenção que se ficou a dever aos partidários de D. Miguel  após a reviravolta absolutista. Efetivamente, qual não foi o meu espanto quando, nas pesquisas que efetuei na ata de 26 de agosto de 1820 da Câmara Municipal da Covilhã (a mais próxima daquela data), presidida pelo Juiz de Fora, José António Correia da Costa Pereira do Lago, de difícil leitura, nada refere sobre a Revolta de 1820. Contudo, a ata seguinte, datada de 8 de setembro de 1820 está toda danificada, rasurada e riscada em todas as suas linhas, para ficar inutilizada, e ainda com riscos verticais, pretos, em nove páginas seguidas. Seguem-se, com normalidade, mas com muita dificuldade de leitura, quase impercetíveis, as atas da CMC de 16 e 19-09-1820, onde nada consta sobre este acontecimento da História de Portugal.


(In "Jornal fórum Covilhã", de 09-09-2020)

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