3 de julho de 2025

MIGUEL ESTEVES CARDOSO RECORDA O SEMANÁRIO “O JORNAL”


 

Sou um leitor assíduo das crónicas diárias deste escritor no Público. Por vezes, por falta de  tempo, algumas escapam-me na diagonal, mas as de MEC, por serem de leitura tentadora, interessante e dotadas de um grande poder de síntese, são, para mim, de leitura obrigatória – e sempre um grande prazer.

Já lá vai o tempo em que comprava sempre o semanário O Jornal e o diário Público em papel, deixando para segundo plano o Diário de Notícias. Com a chegada da pandemia, O Jornal desapareceu e passei a assinar O Público, pela via digital.

Há mais de 60 anos que continuo a escrever em alguns periódicos, pro bono. Por vezes, surge a dificuldade de falta de assunto – como aconteceu desta vez – já que remeti artigos para dois deles e tenho uma cirurgia marcada para o dia 1 de julho.

Veio a propósito a crónica de MEC, publicada a 9 de maio, sob o título “Vai um meio-século?”, onde recordava a sua escrita em O Jornal, há 50 anos. Transportou-me para memórias de quem por lá escrevia e de alguns dos seus diretores. Lembrei-me também de facetas menos positivas da chefia da empresa que representava, a qual, nos tempos do cavaquismo, via com desconfiança tudo o que pudesse ter uma conotação política. Assim aconteceu comigo, por estar associado a O Jornal, identificado como um periódico de esquerda moderada e democrática, com uma linha editorial crítica, independente e progressista. Destacou-se, sobretudo nos anos de 1980, pelo seu jornalismo de investigação, por colaboradores intelectuais de peso e pela sua independência face aos principais partidos políticos, apesar de alguma proximidade editorial com setores mais à esquerda.

O primeiro número foi publicado em 16 de março de 1975, poucos meses após o 25 de Abril de 1974, num contexto de intensa agitação política e grande pluralismo na imprensa portuguesa.

O seu fundador e primeiro diretor foi o jornalista José Carlos Vasconcelos. O último número de O Jornal foi publicado em 1992. Certo é que, nos seus últimos anos, atravessou várias dificuldades financeiras e mudanças de propriedade. O seu último diretor foi José Manuel Barata-Feyo, tendo também passado pela direção figuras como Mário Mesquita e Joaquim Vieira.

Apreciava bastante a página onde escrevia o escritor, romancista e cronista Augusto Abelaira – “Escrever na Água” – com o seu estilo irónico, lúcido e crítico, que tanto prestígio deu ao jornal.

Outros escritores, intelectuais e cronistas de O Jornal incluíam:

- Eduardo Prado Coelho - Ensaísta e crítico literário, colaborava com textos de análise cultural e política.

- António Mega Ferreira – Jornalista e escritor, mais tarde ligado à Expo 98.

- José Carlos Vasconcelos – Já referido acima, também advogado e poeta.

- Helena Vaz da Silva – Jornalista e mulher da cultura, escrevia com enfoque cultural e patrimonial.

- Fernando Assis Pacheco – Jornalista e poeta, conhecido pelo humor e estilo irreverente.

- João Bérard da Costa – Crítico de cinema e ensaísta.

- Maria Augusta Palla – Jornalista e ativista, escreveu sobre temas sociais e direitos das mulheres.

- Fernando Dacosta – Jornalista e escritor, autor de crónicas e textos de fundo.

Como diz Miguel Esteves Cardoso: “Digam o que disserem, não há nada como ser publicado. Fica-se com a sensação de existir”.

Para terminar esta crónica, quero recordar um caso paradigmático ocorrido no dia 18 de junho, na Clínica da Luz, na Covilhã. Aguardava a minha vez de ser chamado quando alguém, que não reconheci de imediato, se aproximou e me perguntou se o não conhecia. Estava, de facto, muito diferente (ele também só me reconheceu quando ouviu o meu nome). Perante a minha perplexidade, recordou-me um livro que publiquei e no qual surgia como líder do Sporting da Covilhã, assim como uma notícia sobre o mesmo publicada no jornal El Adelanto, de Salamanca. Foi então que nos abraçámos, passados mais de 30 anos. Era Manuel Matias Vaz, que se encontrava acompanhado pela filha.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

 

(In “O Olhanense”, de 01-07-2025)

 

ALDEIAS DE CONTRABANDO: MEMÓRIAS DE UMA VIDA RAIANA

 


No número de 5 de junho deste semanário, chamou-me à atenção a reportagem de Miguel Geraldes, sob o título “Era assim a vida” em aldeias de contrabando. Não pude deixar de recuar no tempo e recordar as minhas próprias vivências nessas terras raianas, tão marcadas por histórias de contrabando, de guardas fiscais e carabineiros, mas também de gente trabalhadora e resistente.

Em 1972, por razões profissionais, vivi um ano no Soito, freguesia do concelho do Sabugal. Ali tomei contacto direto com a vida das fronteiras, com o vaivém do contrabando, as dificuldades de quem procurava sobreviver e a vigilância constante das autoridades.

Mais tarde, já regressado à Covilhã e com nova atividade profissional, continuei a visitar as terras dos concelhos do Sabugal, Almeida e Figueira de Castelo Rodrigo, agora em pleno turbilhão político: primeiro durante o regime de Marcelo Caetano, com as célebres Conversas em Família, e depois no conturbado período pós-revolucionário, o PREC – Processo Revolucionário em Curso.

Do meu livro Da Montanha ao Vale, retiro muitas dessas memórias: as nacionalizações de bancos e seguradoras, os saneamentos laborais conduzidos pelos próprios trabalhadores, os sindicatos em força, as tentativas sucessivas de golpes de direita e de esquerda. Ainda recordo, por exemplo, o episódio dramático com que um funcionário do Banco Borges & Irmão foi alvejado pela GNR na Senhora do Carmo, junto ao Teixoso, ao não parar numa operação stop, tendo de ser evacuado de helicóptero para Coimbra.

Nessa mesma noite, eu próprio passei pelo local pouco antes do incidente. Vinha de uma longa deslocação por Escalhão, Vermiosa (onde um cliente amigo, Sr. Trigo Benedito, me deixou telefonar para casa), Figueira de Castelo Rodrigo, Vilar Torpim e Reigada. Foram tempos em que ainda não havia telemóveis, nem mesmo calculadoras de bolso; tempos em que os seguros de automóvel e de caçadores nem sequer eram obrigatórios – apenas o de acidentes de trabalho.

Nas minhas deslocações profissionais assisti também a episódios marcantes: expulsões de presidentes de Câmara, confrontos na afixação de propaganda partidária – PPD, do PCP ou do PS – e comícios improvisados, como em Vilar Torpim, onde um trator serviu de palco para discursos a favor da reforma agrária.

Conheci bem as freguesias de Algodres, Vilar de Amargo, Almofala, Escarigo, Castelo Rodrigo e Freixeda do Torrão, assim como a Quinta de Pêro Martins, Penha de Águia e Mata de Lobos. Cada aldeia com as suas gentes, tradições e dificuldades. Na atividade agrícola, notava-se a diferença entre o sul, onde contavam os cereais em alqueires, e o norte, onde se usavam as fanegas – com medidas que nem sempre coincidiam.

Algumas dessas quintas desapareceram com o avanço da A23 e o crescimento urbano. Lembro as Quintas da Olivosa, Polito, Mata Mouros, Amieiro Longo, Grila e Campo de Aviação, bem como as grandes áreas de cultivo nas terras do Marquês da Graciosa, em Idanha-a-Nova, dedicadas ao trigo, centeio, cevada e tabaco.

Numa dessas visitas à Zebreira, acompanhado pelo agente António Catana, abordámos uma moradora. Ao ver-nos de pasta na mão, perguntou de pronto:

- São negociantes de gado?

Eu, que já tinha passado por cobrador da eletricidade, só podia sorrir com a confusão.

Hoje, a caminho dos 80 anos, já evito as viagens noturnas. Mas na década de 1970 percorria madrugada fora as estradas sinuosas de Pinhel ou Vilar Formoso, numa altura em que as autoestradas eram praticamente inexistentes. Recordo ainda o prazer simples de parar na berma da estrada, escutar os grilos e aliviar-me sob o céu estrelado.

No Soito, saboreava uma reconfortante canja de cornos no Zé Nabeiro. Visitava empresas locais como a Refrigerantes Cristalina Lda e a Vª. Monteiro & Irmão, Lda, no Sabugal, esta com mais de um século de existência. Em Castelo Branco, parava nas empresas J. Castanheira, Lda e J. Valente & Irmãos, C. I. SARL.  – Verdadeiras escolas de primeiros empregos, com empresários e empregados afáveis. Também passava por Vila Velha de Ródão, Proença-a-Nova, Sertã e Cernache do Bonjardim.

Porque recordar é viver.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

 

(In “Jornal do Fundão”, de 03-07-2025)