No número de 5 de junho deste
semanário, chamou-me à atenção a reportagem de Miguel Geraldes, sob o título “Era assim a vida” em aldeias de contrabando.
Não pude deixar de recuar no tempo e recordar as minhas próprias vivências nessas
terras raianas, tão marcadas por histórias de contrabando, de guardas fiscais e
carabineiros, mas também de gente trabalhadora e resistente.
Em 1972, por razões profissionais,
vivi um ano no Soito, freguesia do concelho do Sabugal. Ali tomei contacto
direto com a vida das fronteiras, com o vaivém do contrabando, as dificuldades
de quem procurava sobreviver e a vigilância constante das autoridades.
Mais tarde, já regressado à
Covilhã e com nova atividade profissional, continuei a visitar as terras dos
concelhos do Sabugal, Almeida e Figueira de Castelo Rodrigo, agora em pleno
turbilhão político: primeiro durante o regime de Marcelo Caetano, com as
célebres Conversas em Família, e depois
no conturbado período pós-revolucionário, o PREC – Processo Revolucionário em
Curso.
Do meu livro Da Montanha ao Vale, retiro muitas dessas memórias: as
nacionalizações de bancos e seguradoras, os saneamentos laborais conduzidos
pelos próprios trabalhadores, os sindicatos em força, as tentativas sucessivas
de golpes de direita e de esquerda. Ainda recordo, por exemplo, o episódio
dramático com que um funcionário do Banco Borges & Irmão foi alvejado pela
GNR na Senhora do Carmo, junto ao Teixoso, ao não parar numa operação stop,
tendo de ser evacuado de helicóptero para Coimbra.
Nessa mesma noite, eu próprio
passei pelo local pouco antes do incidente. Vinha de uma longa deslocação por Escalhão,
Vermiosa (onde um cliente amigo, Sr. Trigo Benedito, me deixou telefonar para
casa), Figueira de Castelo Rodrigo, Vilar Torpim e Reigada. Foram tempos em que
ainda não havia telemóveis, nem mesmo calculadoras de bolso; tempos em que os seguros
de automóvel e de caçadores nem sequer eram obrigatórios – apenas o de
acidentes de trabalho.
Nas minhas deslocações
profissionais assisti também a episódios marcantes: expulsões de presidentes de
Câmara, confrontos na afixação de propaganda partidária – PPD, do PCP ou do PS
– e comícios improvisados, como em Vilar Torpim, onde um trator serviu de palco
para discursos a favor da reforma agrária.
Conheci bem as freguesias de Algodres,
Vilar de Amargo, Almofala, Escarigo, Castelo Rodrigo e Freixeda do Torrão,
assim como a Quinta de Pêro Martins, Penha de Águia e Mata de Lobos. Cada
aldeia com as suas gentes, tradições e dificuldades. Na atividade agrícola,
notava-se a diferença entre o sul, onde contavam os cereais em alqueires, e o
norte, onde se usavam as fanegas – com medidas que nem sempre coincidiam.
Algumas dessas quintas
desapareceram com o avanço da A23 e o crescimento urbano. Lembro as Quintas da
Olivosa, Polito, Mata Mouros, Amieiro Longo, Grila e Campo de Aviação, bem como
as grandes áreas de cultivo nas terras do Marquês da Graciosa, em Idanha-a-Nova,
dedicadas ao trigo, centeio, cevada e tabaco.
Numa dessas visitas à Zebreira,
acompanhado pelo agente António Catana, abordámos uma moradora. Ao ver-nos de
pasta na mão, perguntou de pronto:
- São negociantes de gado?
Eu, que já tinha passado por
cobrador da eletricidade, só podia sorrir com a confusão.
Hoje, a caminho dos 80 anos, já
evito as viagens noturnas. Mas na década de 1970 percorria madrugada fora as
estradas sinuosas de Pinhel ou Vilar Formoso, numa altura em que as
autoestradas eram praticamente inexistentes. Recordo ainda o prazer simples de
parar na berma da estrada, escutar os grilos e aliviar-me sob o céu estrelado.
No Soito, saboreava uma
reconfortante canja de cornos no Zé Nabeiro. Visitava empresas locais como a Refrigerantes
Cristalina Lda e a Vª. Monteiro & Irmão, Lda, no Sabugal, esta com mais de
um século de existência. Em Castelo Branco, parava nas empresas J. Castanheira,
Lda e J. Valente & Irmãos, C. I. SARL. – Verdadeiras escolas de primeiros empregos,
com empresários e empregados afáveis. Também passava por Vila Velha de Ródão, Proença-a-Nova,
Sertã e Cernache do Bonjardim.
Porque recordar é viver.
João de Jesus Nunes
(In “Jornal do Fundão”, de
03-07-2025)
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