Era
assim que as crianças mais pequenas do meu tempo ouviam de seus pais e avós
esta expressão temerosa, para que os meninos fechassem os olhos e o sono
chegasse mais rápido.
Depois, a juventude, e os mais
velhos, ao longo dum período prepotente de negridão salazarista e marcelista, viu
o papão inserido nas forças pidescas. E as mentes mórbidas de pensamento, em
cuja patologia só viam que único era só um partido, e único um só pensamento, viam
a forma de suprir algum atrevimento através da criação, e difusão, de muitos
papões.
Já na minha juventude, e num
período em que passei pelo funcionalismo público, fui obrigado a assinar
documentos para o ingresso e promoção de carreira, subscrevendo um juramento
por obrigação, mais ou menos nestes termos: “Declaro
cumprir a Constituição de 1933 e repudiar o comunismo e as suas ideias
subversivas”.
Surgiram entretanto os assaltos
para a emigração clandestina; e a fugida de alguns cérebros para França,
Alemanha e outros países, com o pomposo título de exilados, mais não terão sido
que fugidos à Guerra do Ultramar, mandando às favas o serviço militar, com
muitos a ocultar o medo do papão e a ter que enfrentar as guerras fratricidas.
E aquilo que muitas vezes era
realidade, transformava-se no boato – e “o boato fere como uma lâmina” – lia-se
nuns cartazes expostos nos refeitórios do RI 12, na Guarda.
E “O povo português não está preparado para a democracia, será o caos,
tem muito que aprender” era assim a visão tacanha dos senhores do outro
tempo, na tentação da perenidade dos papões.
- “Ó papão vai-te embora de cima deste telhado, deixa o menino dormir
um soninho descansado”, terá sido a inspiração destemida do capitão
Salgueiro Maia, no histórico 25 de abril de 1974, que terá afastado o grande
papão e muitos outros papões encapotados do berço de muitos meninos que,
entretanto, embora crescendo, crescendo, se foram sentindo muito bem com as
canções de embalar.
Talvez por isso, dois meninos, de
10 e 11 anos, nesse desfolhar da aurora de 25 de abril de há 40 anos, de sua
graça, “Pedrinho dos coelhos” e “Paulito dos postigos”, respetivamente,
embalados por estas canções, um dia se uniriam na memória de virem a ser
recriadores do medo, dos tais “papões”.
E chegámos ao fim do capítulo
deste livro, cuja leitura já dura três anos, com a ressurreição das “canções de
embalar”, insufladas num comovente papão – a troika vai-se embora, mas continua
a ficar o papão.
Estamos
fartos daqueles dois meninos de outros tempos, homens da (des)governação de
hoje, com mais uns quantos outros apaniguados papões, por nos terem cantado
tantas vezes as suas canções de embalar; mas, como abéculas que são, nem
repararam que não nos conseguem fazer dormir.
E a troika é como a história do papão. Para
poupar mais uns cêntimos arruínam-se populações e encerra-se tudo: Finanças,
escolas, hospitais, juntas de freguesia, e tantos et cetera.
Pois é, antigamente, havia o
império do medo pela coação da força; hoje há também medo, ainda que mascarado
na democracia, que muitos querem que perca a dignidade.
A Ministra das Finanças veio dizer
que estamos melhor do que há dois anos, entrando na dança do marketing do
Governo que integra, mas esqueceu-se que já não há canções de embalar que nos
façam dormir, quando a maioria da população está empobrecida e as instituições
de solidariedade social, onde se sobressaem as da caridade, estão cada vez mais
sobrelotadas de atendimento à fome que grassa em muita gente, gente que já
perdeu o medo ao papão.
E os ricos estão cada vez mais
ricos numa afronta que explica os dez por cento do PIB que auferiram em 2013.
Essas fortunas correspondem a 16,7 mil milhões de euros distribuídos por vinte
e cinco famílias.
Palavras para quê? Ó papão vai-te
embora, e, de “saída limpa”, leva também toda esta escumalha que está
provocando uma sujidade intoxicante neste Portugal à beira-mar quase afogado.
Venha depressa o 25 de maio para
que o povo possa cantar, ele sim, a este maldito governo, a sua última canção
de embalar e dizer-lhe: “Ó papão vai-te embora!”.
(In "fórum Covilhã", de 13.05.2014)
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