6 de agosto de 2025

HÁ 519 ANOS PARA ALÉM DA TAPROBANA



 

Hoje conhecida por Sri Lanka, esta ilha situada a sudeste do subcontinente indiano era anteriormente designada por Ceilão, nome que manteve até 1972. Em cingalês, o nome da ilha significa “leão”. Há mais de 500 anos, os portugueses chegaram a este território, iniciando uma longa e complexa relação histórica.

Quase todos os portugueses conhecem as primeiras estrofes do Canto I, de Os Lusíadas:

As armas e os barões assinalados

Que da ocidental praia lusitana,

Por mares nunca de antes navegados

Passaram ainda além da Taprobana.

Ora, Taprobana era a designação que Plínio, no século I d. C., dava à “Ilha dos Leões” e que os navegadores portugueses, ao ali chegarem em 1506, passaram a chamar Ceilão – uma corruptela de Sailan ou Seyllan, nomes usados por mercadores árabes, chineses e italianos da Idade Média.

Origens e primeiros povos

Os registos mais antigos da história do atual Sri Lanka datam do século VI a.C., quando o povo cingalês (ou sinhala) migrou da região de Bengala, na Índia. Antes disso, a ilha era habitada por Vedas, de origem provavelmente malaia, cujos descendentes ainda vivem na parte leste da ilha.

Chegada dos portugueses

Em 1506, oito anos após a chegada de Vasco da Gama, D. Lourenço de Almeida desembarcou no Ceilão, então conhecido como “ilha da canela”, iniciando uma presença portuguesa que duraria cerca de 150 anos. Estabeleceu contactos com o rei de Kotte e iniciou a construção de uma fortaleza. No entanto, o vice-rei D. Francisco de Almeida (1505-1509), pai de D. Lourenço, era contra uma política de conquistas que implicasse grandes recursos humanos e financeiros. Assim, em 1519, a influência portuguesa em Colombo era quase nula, obrigando-os a continuar a comprar a canela a mercadores muçulmanos no Malabar.

Em 1512, António Real aconselhou D. Manuel a investir mais no comércio com as Maldivas e o Ceilão. Mas só em 1518, já no final do vice-reinado de Lopo Soares de Albergaria (1515-1518), se construiu a Fortaleza de Colombo. Mesmo assim, os portugueses nunca conseguiram obrigar o rei de Kotte a pagar regularmente o tributo imposto: 400 bahares de canela e dez elefantes. (Bahar era uma medida de peso variável no comércio do Índico.)

Em 1521, a fortaleza portuguesa foi cercada e abandonada três anos depois. Os portugueses esperavam que o recuo acalmasse os conflitos e garantisse o fornecimento de canela às naus do Reino.  

Os três reinos

No século XVI, o Ceilão era estratégico nas rotas comerciais do Índico, mas politicamente fragmentado. A ilha estava dividida em três reinos:

·       Kotte, no sudoeste, controlava o comércio da canela e foi o primeiro a estabelecer relações com os portugueses.

·       Kandy, no centro, era “reino das montanhas”, que viria a tornar-se aliado e depois inimigo dos portugueses.

·       Jaffna, no norte, era culturalmente ligado ao império hindu de Vijayanagar. Este último é a origem das tensões entre os Tâmeis do Norte e os descendentes dos outros dois reinos, que culminaram na guerra civil do Sri Lanka, séculos depois.

A fragmentação agravou-se em 1521, com a divisão do reino de Kotte e a criação do reino de Sitawala. Este novo reino, apoiado por Calecute, rival dos portugueses, empreendeu uma política expansionista contra Kotte e os seus aliados lusos, conseguindo conquistar Kotte em 1565 e reduzir a presença portuguesa à zona de Colombo.

Conflitos e domínio

Apesar dos revezes, os portugueses beneficiaram da política pró-lusa do rei de Kandy, desde 1550. Essa aliança visava conter Sitawaka. No entanto, em 1587-88, Colombo foi cercada por Sitawaka, numa resposta à cedência do reino de Kotte à Coroa portuguesa. Após resistirem ao cerco, os portugueses iniciaram uma ofensiva que, em sete anos, lhes deu o domínio efetivo da ilha – embora ainda com fortes resistências.

Ao contrário de outras colónias, os portugueses em Ceilão procuraram um domínio territorial e não apenas comercial, tentando implantar uma estrutura colonial baseada na terra. Mas o “reino das montanhas”, Kandy, tornou-se o principal opositor à conquista total da ilha.

A queda

A oposição permanente entre portugueses e cingaleses de Kandy impediu uma conquista completa. Em 1617, foi assinado um tratado de paz: Kandy reconhecia a soberania portuguesa sobre Kotte e comprometia-se a não se aliar aos holandeses, que, desde 1602, rondavam a ilha. Em troca, Portugal reconhecia o poder do rei de Kandy. Mas a paz foi breve.

Entre 1638 e 1658, os holandeses conquistaram todas as posições portuguesas. A presença lusa passou a ser apenas uma memória – mas uma memória viva: centenas de palavras portuguesas (como calça, saia, copo) permanecem no cingalês, assim como apelidos como Sousa, Coutinho ou Pereira, ainda comuns na atualidade.

DADOS ATUAIS DO SRI LANKA

Nome oficial: República Democrática Socialista de Sri Lanka.

Capital: Sri Jayawardenapura-Kotte (desde 1982), subúrbio da antiga capital Colombo.

Superfície: de 66.000 Km2.

População (2023): 22.04 milhões.

Grupos étnicos (2002):

·       Cingaleses: 74%

·       Tamiles: 18%

Línguas oficiais: Cingalês e Tamil

Religiões (2001):

·       Budismo: 69,1%

·       Islamismo: 7,6%

·       Hinduísmo: 7,1%

·       Cristianismo: 6,2%

Moeda: Rupia cingalesa

Regime: Parlamentar

Chefe de Estado: Presidente da República, eleito por seis anos.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

Fontes: Clube do Colecionador - junho 2004; Wikipédia

 

(In “O Olhanense”, de 01-08-2025)

28 de julho de 2025

O CAMINHO DAS PALAVRAS: TESTEMUNHO DE UMA VIDA DE ESCRITA




 

Sempre gostei de escrever, influenciado pela vivência na antiga Biblioteca Municipal, junto ao Jardim, onde passei grande parte da minha meninice e adolescência. Era aí que o meu Pai trabalhava, com a responsabilidade de abrir e encerrar a biblioteca, atender os leitores – procurando perceber o que pretendiam, numa época marcada por forte iliteracia –, entregar os livros e jornais solicitados, gerir o arquivo e desempenhar outras tarefas inerentes. Muitas vezes, substituía a primeira bibliotecária que conheci – a Drª. Maria José Borges, nos anos 50 do século passado. Mais tarde, surgiu a Drª. Maria Celeste de Moura.

As novas tecnologias nem se sonhavam. O ensino universitário existia apenas em Lisboa, Porto, Coimbra e Évora. Na Covilhã havia a Escola Industrial e Comercial Campos Melo, com cursos vocacionados para a indústria local e para os serviços comerciais, e o Liceu, que só mais tarde passou a ser Nacional. Quem pretendia seguir o ensino superior precisava de ter os bolsos bem recheadas para se poder estudar fora. Existia ainda o Colégio Moderno, que permitia prosseguir os estudos até ao antigo 7º ano, enquanto o Liceu e a Escola Industrial apenas iam até ao 5º ano ou equivalente.

O meu Pai, que fora anteriormente professor primário, ensinou-me a ler e escrever. Quando entrei para a Primária, no Asilo, fui diretamente para a 2ª classe. Terminei a 4ª classe (então o último grau obrigatório de escolaridade) e fiz o exame de admissão ao ensino secundário, na Escola Industrial, onde fui aprovado. Iniciei o Ciclo Preparatório e concluí o Curso Geral do Comércio e o Exame de Aptidão Profissional.

Os meus pais tiveram uma família numerosa, como era comum à época. As dificuldades económicas eram enormes. Desconhecíamos o que era ter férias e as algibeiras andavam sempre vazias – nem se sonhava com uma semanada. Incuti no meu Pai a ideia de arranjar um emprego e estudar à noite. Assim sucedeu. Fiz um exame de transição e tive de estudar, sozinho e sob o calor do verão, o programa completo de História Geral e Pátria do 2.º ano, além de Francês – tudo num mês e meio. Tudo isto para não perder um ano, já que o curso noturno durava mais tempo.

Os jovens de hoje não imaginam estas dificuldades. Como se costuma dizer, comi o pão que o diabo amassou.

A minha paixão pela escrita nasceu do ensino do meu Pai, da vivência na biblioteca e da atenção que dedicava aos estudantes que por lá passavam e que hoje, com cursos superiores e já aposentados, recordo com estima. Também ali via figuras notáveis que conversavam com meu Pai, por quem tinham grande consideração. Ele foi professor do falecido Cónego José de Almeida Geraldes, antigo diretor do Notícias da Covilhã (NC), e do poeta, escritor e professor universitário Prof. Dr. Arnaldo Saraiva, além de dois padres jesuítas.  Tive professores de excelência a Português, que me ajudaram a desenvolver o gosto e a habilidade pela escrita – as minhas redações costumavam ter notas elevadas.

 Mesmo nas poucas horas vagas do serviço na biblioteca, o meu Pai lecionava cursos de Educação de Adultos e preparava alunos para os exames de admissão ao secundário. Foi-lhe criado, pela primeira vez, um curso de adultos na Cadeia Comarcã da Covilhã, onde foi o primeiro professor a lecionar.

Com 17 anos, já era administrativo na Câmara Municipal da Covilhã. Concorri mais tarde a outro cargo superior, tirei a nota mais alta e pouco depois chegou o Serviço Militar Obrigatório. Fui para Tavira, para o Curso de Sargentos Milicianos, acompanhado por colegas da Escola Industrial. Eram três que, infelizmente, já faleceram. Depois segui para Leiria, (RAL 4), onde fui colocado e formei outros soldados em datilografia – não havia computadores nem telemóveis.

A distância da Covilhã, da família e do namoro levou-me a pedir transferência para mais perto de casa.

Assim, rumei à Guarda (RI 12), “sem despesas para a Fazenda Nacional”, onde encontrei muitos covilhanenses, como o Eduardo Prata, o Nuno Rato, do Teixoso, o Bicho Nogueira e o José Marques Abrantes entre outros. Também se encontrava o António José Fazenda, já falecido, que tal como o Eduardo Prata, jogavam no Sporting Clube da Covilhã. Foi também aqui que escrevi o meu primeiro artigo fora da Covilhã, no boletim daquela unidade militar – Fronteiros da Beira.

Após 42 meses de vida militar regressei à Câmara Municipal. Mas, escrevendo para o Notícias da Covilhã, algumas críticas que fiz obrigaram-me a ser cauteloso, temendo a PIDE. Fui trabalhar para uma empresa no Soito, freguesia do concelho do Sabugal, e depois fui convidado a chefiar a área administrativa e comercial da Companhia Europeia de Seguros, nos distritos de Castelo Branco e Guarda. Mais tarde, tornei-me empresário no setor segurador, representando a Liberty Seguros e outras Seguradoras.

A escrita, porém, nunca me abandonou. Continuei a publicar em vários jornais regionais e nacionais pro bono. Até hoje já publiquei 890 crónicas. No âmbito da APAE Campos Melo - Associação de Antigos Professores, Alunos e Empregados da Escola Campos Melo – que ajudei a fundar – consegui que fosse promovida a homenagem aos antigos atletas, treinadores e dirigentes do Sporting Clube da Covilhã (SCC) que jogaram na Primeira Divisão.

Convidei a imprensa nacional, com destaque para o Record e A Bola, e entidades e instituições oficiais do desporto e, apesar das dificuldades financeiras da associação que representava como um dos dirigentes, o evento teve um grande sucesso. Estávamos no dia 28 de setembro de 1991. Assumi o compromisso de escrever o primeiro livro sobre a história do SCC, publicado em 1992.

A imprensa nacional deu destaque ao evento e aos livros que se seguiram. O Jornal O Jogo anunciou um dos meus livros, e o jornal espanhol El Adelanto, de 14 de agosto de 1993, também se referiu a outra obra minha.

Na altura, a ausência de tecnologias dificultava muito: escrevia à máquina e as tipografias ainda não estavam evoluídas. A cor das páginas implicava várias chapas. Hoje, tudo é mais simples e acessível.

Seguiram-se várias publicações, umas por iniciativa própria em datas comemorativas, outras a pedido de associações, coletividades e instituições. Fazia tudo pro bono. Foram centenas de horas de trabalho, conciliadas com a vida profissional, muitas vezes com grande desgaste mental, mas nunca desisti.

Depois dos três livros sobre o SCC (mais tarde surgiu um quarto), publiquei a história dos Bombeiros Voluntários da Covilhã, em dois volumes, a convite da Direção, onde eu era Vice-Presidente do Conselho Fiscal.

Mas o maior desafio foi aceitar o convite – feito apenas com um aperto de mão, no Restaurante Sangrinhal – para escrever a História dos Seguros em Portugal. Depois de alguma resistência, aceitei e produzi O Documento Antigo – Uma Outra Forma de Ver os Seguros, obra inédita que combina narrativa histórica, romance e antologia documental. Está presente em mais de 150 bibliotecas municipais, bem como em universidades e outras instituições.

Em 2022 publiquei os meus dois últimos livros: Da Montanha ao Vale, e Recordar é Viver – este baseado em textos iniciados a 2 de julho de 1967, há já 56 anos.

Dos 12 livros publicados, o primeiro foi apresentado há 33 anos (1992). O meu primeiro artigo surgiu há 61 (1964). Escrevi em mais de 30 periódicos regionais e nacionais.

Sinto orgulho em saber que que a minha ação cultural e escrita se encontram presentes em várias universidades e em mais de 150 bibliotecas municipais do país.

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmil.com

(In “Jornal Fórum Covilhã”, de 23-07-2025 – digital)

18 de julho de 2025

O DIA DO BIQUÍNI E OUTRAS DATAS BOMBÁSTICAS

 

Em pleno estio, a parte cognitiva traz-me alguma dose de preguiça. Daí que, por mero acaso, no dia 5 de julho, li algures que se tratava do Dia do Bikini. Penso mesmo que há um exagero nestas celebrações. Será que também existe o Dia do Sutiã, do Vestido, das Calças, das Cuecas, do Fato-Macaco, do Cinto e dos Suspensórios? Mais acertado seria o Dia do Cão, do Gato, da Galinha ou do Porco – também chamado suíno, cevado ou bácoro.

Entre a tristeza e a hilaridade, opto pela segunda. A história do biquíni remete ao seu lançamento em 5 de julho de 1946. Tinha eu acordado para este planeta havia menos de quatro meses. Ainda não podia dar-me ao prazer de apreciar como essa peça de vestuário revolucionava mentes – quem sabe, na imaginação de Eva no Jardim de Éden.

Pois bem, foi em França que tal aconteceu – e não no paraíso terrestre.  O primeiro modelo foi desenhado por Louis Réard nesse ano de 1946, embora só tenha ganhado popularidade nos anos 60.

O nome desta ousada invenção deriva de uma ilha do Pacífico – Bikinionde se realizavam testes nucleares. A intenção era clara: sugerir que esta pequena peça teria um efeito “bombástico” na sociedade.

E teve. A sociedade tentou resistir, até que atrizes ousadas começaram a usá-lo. Brigitte Bardot foi pioneira no filme E Deus Criou a Mulher.

Com o tempo, a peça popularizou-se e tornou-se ainda mais arrojada, até que, nos anos 80, uma modelo brasileira lançou o famoso “fio dental”.

No Dia do Biquíni, marcas e lojas aproveitam para lançar novos modelos e fazer promoções. Enquanto isso, as mulheres compram ou desfilam os seus prediletos, na praia, na piscina ou até mesmo no jardim desde que haja sol.

Segundo a Vogue, o fato de banho – ultra minimalista para a época – foi apresentado na piscina do Hotel Molitor, em Paris, no corpo da dançarina exótica Micheline Bernardini, do Casino de Paris, a única que aceitou usá-lo. Com o slogan “O Bikini, a primeira bomba anatómica”, rapidamente começou a ser comercializado e a conquistar fãs entre as figuras públicas.

Em 1953, durante o Festival de Cinema de Cannes, a jovem Brigitte Bardot, com apenas 18 anos, atraiu todos os olhares – não na passadeira vermelha, mas na praia, com um biquíni reduzido e florido. Relembrava o papel que havia interpretado no filme Manina, the Girl in the Bikini (1952), de Willy Rozier.

Proibido inicialmente em diversas praias europeias, o biquíni foi ganhando popularidade graças às revistas de moda, imagens de pin-ups, e ao impulso da música e do cinema. Foi o caso de Ursula Andress emergindo das águas em James Bond 007 vs Dr. No (1962), Sue Lyon deitada na relva em Lolita (1962), ou Raquel Welch com o seu biquíni de padrão animal em One Million Years BC (1966).

Em 1968, o movimento feminista francês contribuiu decisivamente para a democratização da peça.

As tendências de moda demoravam a chegar até nós. Viam-se nas revistas, mas uma sociedade conservadora torcia o nariz às ousadias dos estilistas franceses. A ideia de separar o já ousado fato de banho em duas peças surgiu em Paris, após a Segunda Guerra Mundial. Em maio de 1946, Louis Réard, gerente de uma loja de lingerie, anunciou “o mais reduzido fato de banho do mundo”. Quase em simultâneo, Jacques Heim apresentou um modelo ainda menor, mas tal era a ousadia que nem encontrou modelos dispostas a desfilá-lo. Recorreu, então, a artistas de cabaré de Pigalle, que comentaram: “Este fato de banho vai ser mais explosivo do que as bombas de Biquíni”.

Nos anos 50, o biquíni esteve proibido em diversos países. Por cá, era tema apenas de curiosidade jornalística. Mostrar o umbigo era impensável. As jovens mais atrevidas chegaram a ser multadas – quase excomungadas. Foi preciso a ousadia de algumas atrizes estrangeiras para mudar mentalidades.

Nunca vi freiras, judias ou muçulmanas de biquíni. Mas em duas viagens a Israel, observei muçulmanas a banharem-se vestidas no Mar Morto e judias a realizarem batismos no rio Jordão com túnicas próprias.

Na viragem da década, atrizes como Ava Gardner, Ursula Andress e Brigitte Bardot seduziram meio mundo com os seus biquínis.

Nos anos 60, os umbigos passaram a ver a luz do sol – o biquíni tornara-se símbolo do movimento pop.

Recordo um excerto de Eduardo Prado Coelho, num excelente artigo publicado no Público em 2004, intitulado O umbigo dos sonhos:

“As calças femininas descem vertiginosamente abaixo da cintura, deixando por vezes entrever uma peça mais íntima de roupa. Se se trata de figuras de grande elegância, o efeito da beleza é incontestável. Nos casos mais prudentes, há uma zona do corpo que ora aparece coberta, ora se descobre ousadamente”.

Na década seguinte, o biquíni já era vulgarizado. Poucos anos depois, surgiram o topless e o fio dental, prontos a provocar síncopes nas senhoras do tempo do fato de banho até aos joelhos.

Mas as modas não esperam – e até os mais conservadores acabam por se habituar.

Hoje, o biquíni já não é escândalo – é acessório, é símbolo, é liberdade. E embora a moda continue a girar, umas vezes recatando, outras ousando, este pequeno pedaço de tecido continua a lembrar-nos que, por vezes, basta muito pouco para mudar tudo.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “O Olhanense”, de 15-07-2025)


10 de julho de 2025

UM ATO DE JUSTIÇA

 

Falta um ano para as comemorações do centenário do Núcleo da Covilhã da Liga dos Combatentes. Na véspera deste marco histórico, a persistência da Direção da Instituição permitiu que um ato de justiça fosse concretizado ainda antes da efeméride.

Assim, no dia 22 de junho de 2025, mais de meio século após o movimento revolucionário do 25 de Abril de 1974, o Núcleo da Covilhã da Liga dos Combatentes inaugurou o Memorial aos Combatentes da Guerra do Ultramar da Covilhã.

Era inegável a importância da existência de um monumento autónomo que evocasse esse período marcante da nossa história.

O Memorial localiza-se junto ao Jardim Público, ao lado do Monumento ao Soldado Desconhecido. Era uma aspiração antiga do Núcleo da Covilhã. Segundo palavras do Presidente da Direção, João Azevedo, esta homenagem é “significativa, edificante, elogiosa”, além de representar “um reconhecimento do esforço” feito pelos antigos combatentes nas ex-colónias e pelas respetivas famílias.

São 48 os covilhanenses que tombaram na Guerra Colonial e que agora ficam perpetuados para a posteridade – tal como os que regressaram feridos ou continuam a sofrer de stress pós-traumático. É, portanto, essencial que se preserve a memória de todos os que foram enviados para África e para a Índia.

Esta homenagem é imprescindível para os covilhanenses – da cidade e do concelho. Foram homens valorosos que, no mais longo conflito armado da história recente de Portugal, combateram em três teatros de operações: Guiné, Angola e Moçambique. Viveram momentos profundamente dolorosos – eles e as suas famílias. Foi, sem dúvida, um dos períodos mais sombrios da nossa história.

Os nomes de quase meia centena de jovens do concelho da Covilhã, que morreram em combate entre 1961 e 1974, estão inscritos no Memorial. A obra representou um investimento municipal de 75 mil euros. O projeto arquitetónico é da autoria de António Saraiva e Francisco Oliveira, que utilizaram granito, mármore e aço corten, para simbolizar a dureza do tema.

De acordo com os autores, o grande pórtico em aço corten, com base triangular – formal e simbolicamente representando a Serra da Estrela –, domina o espaço. Na base sólida e geométrica do murete em granito amarelo estão quatro lápides – Angola, Guiné, Índia e Moçambique – em aço, com os nomes dos militares mortos inscritos por ordem alfabética, de acordo com as listas oficiais fornecidas pela Liga dos Combatentes da Covilhã.

“A frieza da geometria do monumento é quebrada com uma imponente coluna central em mármore, que simboliza a perenidade de Portugal e a sua continuidade através dos séculos”, afirmam os arquitetos. As lajes em granito e mármore no solo representam as marcas físicas e psíquicas que muitos trouxeram do conflito. Ao lado, erguem-se três mastros com as bandeiras de Portugal, da Covilhã e da Liga dos Combatentes.

“É importante para quem esteve na chamada Guerra do Ultramar, ter um monumento que evoque especificamente este período, um reconhecimento do nosso esforço”, afirmou João Azevedo.

O Presidente da Câmara, Vitor Pereira, declarou: “O município presta, em nome dos covilhanenses, uma homenagem aos nossos combatentes. Este monumento simboliza a gratidão e o profundo reconhecimento por tudo o que fizeram. Queremos homenagear os que estão entre nós, os que partiram e os que tombaram no campo de batalha”. E concluiu, considerando este gesto como um “ato de justiça” perante a dívida moral dos portugueses para com os muitos jovens que foram combater “na flor da idade”.

João Azevedo salientou ainda a “justiça desta homenagem aos antigos combatentes que continuam a ser esquecidos e negligenciados pelo Estado e pela sociedade”.

Durante a cerimónia de inauguração – marcada por toques militares e entrega de medalhas de campanha – foi também prestada homenagem póstuma a Carlos Ramos, porta-estandarte durante muitos anos, figura emblemática deste Núcleo, já evocada aquando do seu falecimento em edição anterior.

É confrangedor constatar que, em 13 anos, Portugal mobilizou mais de um milhão de militares para a Guerra do Ultramar, onde cerca de dez mil perderam a vida. Foram ainda causadas aproximadamente 120 mil vítimas entre feridos e deficientes físicos.

Fundado a 16 de fevereiro de 1926, o Núcleo da Covilhã da Liga dos Combatentes conta atualmente com cerca de novecentos associados. João Azevedo, o seu presidente, lidera esta instituição há mais de quatro décadas.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “O Combatente da Estrela”, nº. 139, JUL/2025)


CONTE-NOS A SUA HISTÓRIA Armínio Robalo Gamas


 

Trago para este número d’O Combatente da Estrela uma figura recatada e amiga do seu amigo. Conheço-a há cerca de meio século, principalmente no âmbito das lides profissionais.

Depois de me dedicar intensamente à escrita – que iniciei há seis décadas – vim a saber que o referenciado também é um antigo combatente das guerras do Ultramar. Daí o convite, que gentilmente aceitou, para narrar algo da sua passagem por terras de Angola.

Armínio Gamas nasceu no dia 28 de junho de 1946, no Vale da Senhora da Póvoa, concelho de Penamacor, mas foi na Covilhã que encontrou o seu primeiro emprego, na indústria de lanifícios, na fábrica de Joaquim Pereira Espiga.

É casado, tem dois filhos, quatro netos e um bisneto.

O início do serviço militar obrigatório ocorreu no CICA 4, no dia 20 de fevereiro de 1967. Foi depois transferido para o R.C. 6, no Porto, em 23 de abril do mesmo ano, seguindo posteriormente para a R.A.A.F. em 10 de junho.

Como se depreende, a sua especialidade foi a de condutor.

A mobilização para Angola surgiu rapidamente, tendo embarcado em Lisboa a 30 de agosto de 1967, no navio Vera Cruz, e desembarcado em Luanda a 14 de setembro do mesmo ano.

Em Luanda esteve três dias no quartel do Grafanil. Seguiu depois de embarcação até Noqui, onde permaneceu até ao seu regresso à Metrópole, em 9 de setembro de 1969, também no Vera Cruz.

Armínio Gamas informo-nos que, para além de várias trocas de tiros, a companhia não teve muitos problemas, excetuando-se uma morte em combate na CCS.

Questionado sobre se encontrou por lá alguém da Covilhã, respondeu-nos que estiveram com ele alguns conhecidos do concelho, entre os quais Carlos Venâncio, do Tortosendo, que pertenceu à sua companhia e se encontrava na mesma caserna.

Pois bem, o Carlos Meireles Venâncio, do Tortosendo, foi meu colega na Escola Industrial e Comercial Campos Melo da Covilhã.

Entretanto, Armínio Robalo Gamas, depois de regressar de Angola e cumprir o serviço militar obrigatório, retomou a sua atividade profissional na Covilhã, agora através da Praça de Táxis. Terminou a sua carreira como motorista de longo curso na empresa covilhanense Águias, Neves & Couto.

J. J. Nunes - Covilhã


(In "O Combatente da Estrela", nº. 139 - JUL/2025)


3 de julho de 2025

MIGUEL ESTEVES CARDOSO RECORDA O SEMANÁRIO “O JORNAL”


 

Sou um leitor assíduo das crónicas diárias deste escritor no Público. Por vezes, por falta de  tempo, algumas escapam-me na diagonal, mas as de MEC, por serem de leitura tentadora, interessante e dotadas de um grande poder de síntese, são, para mim, de leitura obrigatória – e sempre um grande prazer.

Já lá vai o tempo em que comprava sempre o semanário O Jornal e o diário Público em papel, deixando para segundo plano o Diário de Notícias. Com a chegada da pandemia, O Jornal desapareceu e passei a assinar O Público, pela via digital.

Há mais de 60 anos que continuo a escrever em alguns periódicos, pro bono. Por vezes, surge a dificuldade de falta de assunto – como aconteceu desta vez – já que remeti artigos para dois deles e tenho uma cirurgia marcada para o dia 1 de julho.

Veio a propósito a crónica de MEC, publicada a 9 de maio, sob o título “Vai um meio-século?”, onde recordava a sua escrita em O Jornal, há 50 anos. Transportou-me para memórias de quem por lá escrevia e de alguns dos seus diretores. Lembrei-me também de facetas menos positivas da chefia da empresa que representava, a qual, nos tempos do cavaquismo, via com desconfiança tudo o que pudesse ter uma conotação política. Assim aconteceu comigo, por estar associado a O Jornal, identificado como um periódico de esquerda moderada e democrática, com uma linha editorial crítica, independente e progressista. Destacou-se, sobretudo nos anos de 1980, pelo seu jornalismo de investigação, por colaboradores intelectuais de peso e pela sua independência face aos principais partidos políticos, apesar de alguma proximidade editorial com setores mais à esquerda.

O primeiro número foi publicado em 16 de março de 1975, poucos meses após o 25 de Abril de 1974, num contexto de intensa agitação política e grande pluralismo na imprensa portuguesa.

O seu fundador e primeiro diretor foi o jornalista José Carlos Vasconcelos. O último número de O Jornal foi publicado em 1992. Certo é que, nos seus últimos anos, atravessou várias dificuldades financeiras e mudanças de propriedade. O seu último diretor foi José Manuel Barata-Feyo, tendo também passado pela direção figuras como Mário Mesquita e Joaquim Vieira.

Apreciava bastante a página onde escrevia o escritor, romancista e cronista Augusto Abelaira – “Escrever na Água” – com o seu estilo irónico, lúcido e crítico, que tanto prestígio deu ao jornal.

Outros escritores, intelectuais e cronistas de O Jornal incluíam:

- Eduardo Prado Coelho - Ensaísta e crítico literário, colaborava com textos de análise cultural e política.

- António Mega Ferreira – Jornalista e escritor, mais tarde ligado à Expo 98.

- José Carlos Vasconcelos – Já referido acima, também advogado e poeta.

- Helena Vaz da Silva – Jornalista e mulher da cultura, escrevia com enfoque cultural e patrimonial.

- Fernando Assis Pacheco – Jornalista e poeta, conhecido pelo humor e estilo irreverente.

- João Bérard da Costa – Crítico de cinema e ensaísta.

- Maria Augusta Palla – Jornalista e ativista, escreveu sobre temas sociais e direitos das mulheres.

- Fernando Dacosta – Jornalista e escritor, autor de crónicas e textos de fundo.

Como diz Miguel Esteves Cardoso: “Digam o que disserem, não há nada como ser publicado. Fica-se com a sensação de existir”.

Para terminar esta crónica, quero recordar um caso paradigmático ocorrido no dia 18 de junho, na Clínica da Luz, na Covilhã. Aguardava a minha vez de ser chamado quando alguém, que não reconheci de imediato, se aproximou e me perguntou se o não conhecia. Estava, de facto, muito diferente (ele também só me reconheceu quando ouviu o meu nome). Perante a minha perplexidade, recordou-me um livro que publiquei e no qual surgia como líder do Sporting da Covilhã, assim como uma notícia sobre o mesmo publicada no jornal El Adelanto, de Salamanca. Foi então que nos abraçámos, passados mais de 30 anos. Era Manuel Matias Vaz, que se encontrava acompanhado pela filha.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

 

(In “O Olhanense”, de 01-07-2025)

 

ALDEIAS DE CONTRABANDO: MEMÓRIAS DE UMA VIDA RAIANA

 


No número de 5 de junho deste semanário, chamou-me à atenção a reportagem de Miguel Geraldes, sob o título “Era assim a vida” em aldeias de contrabando. Não pude deixar de recuar no tempo e recordar as minhas próprias vivências nessas terras raianas, tão marcadas por histórias de contrabando, de guardas fiscais e carabineiros, mas também de gente trabalhadora e resistente.

Em 1972, por razões profissionais, vivi um ano no Soito, freguesia do concelho do Sabugal. Ali tomei contacto direto com a vida das fronteiras, com o vaivém do contrabando, as dificuldades de quem procurava sobreviver e a vigilância constante das autoridades.

Mais tarde, já regressado à Covilhã e com nova atividade profissional, continuei a visitar as terras dos concelhos do Sabugal, Almeida e Figueira de Castelo Rodrigo, agora em pleno turbilhão político: primeiro durante o regime de Marcelo Caetano, com as célebres Conversas em Família, e depois no conturbado período pós-revolucionário, o PREC – Processo Revolucionário em Curso.

Do meu livro Da Montanha ao Vale, retiro muitas dessas memórias: as nacionalizações de bancos e seguradoras, os saneamentos laborais conduzidos pelos próprios trabalhadores, os sindicatos em força, as tentativas sucessivas de golpes de direita e de esquerda. Ainda recordo, por exemplo, o episódio dramático com que um funcionário do Banco Borges & Irmão foi alvejado pela GNR na Senhora do Carmo, junto ao Teixoso, ao não parar numa operação stop, tendo de ser evacuado de helicóptero para Coimbra.

Nessa mesma noite, eu próprio passei pelo local pouco antes do incidente. Vinha de uma longa deslocação por Escalhão, Vermiosa (onde um cliente amigo, Sr. Trigo Benedito, me deixou telefonar para casa), Figueira de Castelo Rodrigo, Vilar Torpim e Reigada. Foram tempos em que ainda não havia telemóveis, nem mesmo calculadoras de bolso; tempos em que os seguros de automóvel e de caçadores nem sequer eram obrigatórios – apenas o de acidentes de trabalho.

Nas minhas deslocações profissionais assisti também a episódios marcantes: expulsões de presidentes de Câmara, confrontos na afixação de propaganda partidária – PPD, do PCP ou do PS – e comícios improvisados, como em Vilar Torpim, onde um trator serviu de palco para discursos a favor da reforma agrária.

Conheci bem as freguesias de Algodres, Vilar de Amargo, Almofala, Escarigo, Castelo Rodrigo e Freixeda do Torrão, assim como a Quinta de Pêro Martins, Penha de Águia e Mata de Lobos. Cada aldeia com as suas gentes, tradições e dificuldades. Na atividade agrícola, notava-se a diferença entre o sul, onde contavam os cereais em alqueires, e o norte, onde se usavam as fanegas – com medidas que nem sempre coincidiam.

Algumas dessas quintas desapareceram com o avanço da A23 e o crescimento urbano. Lembro as Quintas da Olivosa, Polito, Mata Mouros, Amieiro Longo, Grila e Campo de Aviação, bem como as grandes áreas de cultivo nas terras do Marquês da Graciosa, em Idanha-a-Nova, dedicadas ao trigo, centeio, cevada e tabaco.

Numa dessas visitas à Zebreira, acompanhado pelo agente António Catana, abordámos uma moradora. Ao ver-nos de pasta na mão, perguntou de pronto:

- São negociantes de gado?

Eu, que já tinha passado por cobrador da eletricidade, só podia sorrir com a confusão.

Hoje, a caminho dos 80 anos, já evito as viagens noturnas. Mas na década de 1970 percorria madrugada fora as estradas sinuosas de Pinhel ou Vilar Formoso, numa altura em que as autoestradas eram praticamente inexistentes. Recordo ainda o prazer simples de parar na berma da estrada, escutar os grilos e aliviar-me sob o céu estrelado.

No Soito, saboreava uma reconfortante canja de cornos no Zé Nabeiro. Visitava empresas locais como a Refrigerantes Cristalina Lda e a Vª. Monteiro & Irmão, Lda, no Sabugal, esta com mais de um século de existência. Em Castelo Branco, parava nas empresas J. Castanheira, Lda e J. Valente & Irmãos, C. I. SARL.  – Verdadeiras escolas de primeiros empregos, com empresários e empregados afáveis. Também passava por Vila Velha de Ródão, Proença-a-Nova, Sertã e Cernache do Bonjardim.

Porque recordar é viver.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

 

(In “Jornal do Fundão”, de 03-07-2025)

 

 

 

 


25 de junho de 2025

A REVOLUÇÃO DO SONO



 

Acabei de ler este livro, da grega Arianna Huffington, que explica por que razão estamos tão cansados – e como isso pode mudar.

Eu e a minha mulher somos pessoas que sempre dormimos pouco. Dormir sete horas consecutivas é, para nós, de difícil concretização. Nem mesmo a medicação destinada a esse fim, muitas vezes, produz os efeitos desejados.

Vivemos cansados, estamos habituados ao cansaço e achamos que ele é o preço a pagar para alcançarmos o sucesso e atingirmos os nossos objetivos pessoais e profissionais. Estamos, de facto, numa crise de privação de sono, que tem impacto profundo na nossa qualidade de vida.

O sono é um elemento-chave do nosso bem-estar e interage profundamente com todas as outras dimensões da saúde. A principal mensagem deste livro é clara: assim que se começa a dormir sete ou oito horas por noite, torna-se mais fácil meditar, fazer exercício físico, tomar decisões mais inteligentes e estabelecer conexões mais profundas connosco próprios e com os outros.

Ao mesmo tempo que a ciência do sono avança, sentimos uma necessidade urgente de redescobrir o seu mistério. Cada noite pode ser um lembrete de que somos mais do que a soma dos nossos sucessos e fracassos.

Estamos realmente a viver uma crise do sono. Mais de 40% dos norte-americanos dormem menos do que o mínimo recomendado de sete horas por noite – e as estatísticas no resto do mundo são semelhantes ou até piores.

Na história do sono, só agora estamos a começar a sair de uma fase que teve início com a Revolução Industrial, altura em que o sono passou a ser visto apenas como um obstáculo ao trabalho. O século XX viu o movimento operário lutar contra essa invasão da vida pessoal, e mais tarde, com o surgimento da nova ciência do sono, começámos a compreender que ele está profundamente ligado a todos os aspetos do trabalho na nossa vida pessoal. E mais tarde, com o nascimento da nova ciência do sono, começámos a descobrir que este está, na realidade, profundamente ligado a todos os aspetos da saúde física e mental. A falta de sono está associada a um maior risco de diabetes, obesidade e da doença de Alzheimer. Devemos, pois, estar atentos a perturbações do sono, como a apneia, a insónia e até à curiosa “síndrome da cabeça explosiva” – sim, é mesmo esse o nome científico.

A nossa atual crise de sono

Sarvshreshth Gupta era analista de primeiro ano na Goldman Sachs, em S. Francisco, em 2015. Esmagado por semanas de trabalho de cem horas, decidiu sair do banco em março. Pouco depois, regressou – não se sabe ao certo se por vontade própria ou por pressão. Uma semana depois, ligou ao pai, às 2h40 da manhã. Disse que não dormia há dois dias, que estava a terminar uma apresentação e a preparar-se para uma reunião matinal – sozinho no escritório. O pai aconselhou-o a ir para casa, mas Gupta respondeu que ficaria apenas “mais um pouco”. Horas depois, foi encontrado morto na rua, em frente de casa. Saltara do arranha-céus onde vivia.

Segundo uma sondagem recente da Gallup, 40% dos adultos americanos dormem significativamente menos do que o mínimo recomendado – uma estatística já referida acima.

Dormir o suficiente, diz a Dra. Judith Owens, diretora do Centro para Perturbações do Sono Pediátricas do Hospital Infantil de Boston, é “tão importante como uma boa alimentação, a prática de atividade física e o uso do cinto de segurança”. Contudo, a maioria das pessoas subestima gravemente as suas necessidades de sono.

Um relatório da Fundação Nacional do Sono dos EUA confirma: dois terços das pessoas não dormem o suficiente durante a semana.

A crise é global. Em 2011, 32% dos inquiridos no Reino Unido disseram dormir, em média, menos de sete horas por noite nos seis meses anteriores. Em 2014 esse número subiu para 60%. Em 2013, mais de um terço dos alemães e dois terços dos japoneses afirmaram não dormir o suficiente durante uma semana.

Nos rankings das cidades onde se dorme menos, Tóquio lidera com perigosas 5 horas e 45 minutos por noite. Seul regista 6h03, o Dubai 6h13. Singapura 6h27, Hong Kong 6h29 e Las Vegas 6h32.

E para demasiadas pessoas, o ciclo vicioso da falta de dinheiro alimenta o ciclo da falta de sono. Se alguém trabalha em dois ou três empregos para sobreviver, “dormir mais” dificilmente será uma prioridade.

As mulheres precisam de mais horas de sono do que os homens e, por isso, os efeitos da privação de sono nelas são ainda mais nocivos, tanto a nível físico como mental.

Se o esgotamento é a doença da civilização moderna, a privação do sono é uma das suas principais causas. É um paradoxo da vida contemporânea: vivemos exaustos e, mesmo assim, não conseguimos dormir – o que nos deixa ainda mais exaustos no dia seguinte, e no seguinte, e no seguinte…

Existe, inclusive, uma indústria inteira dedicada a facilitar o sono. Só em 2014, nos EUA, foram prescritas mais de 55 milhões de receitas de comprimidos para dormir, com vendas superiores a 897 milhões de euros. Um relatório de 2013 dos Centros para Controlo e Prevenção e Doenças (CDC) concluiu que 9 milhões de americanos – 4% da população adulta – usam regularmente estes fármacos. As mulheres são as principais consumidoras; o consumo aumenta com a idade e o nível de escolaridade, e os adultos brancos consomem mais do que qualquer outro grupo étnico.

O café e o chá já existem há séculos. Valorizamo-los pela capacidade de nos manterem despertos, mas muitas culturas também os associam a momentos de pausa, contemplação e sociabilidade – como o famoso coffe break ou a cerimónia do chá japonesa. São rituais que nos convidam a parar.

Dormir é um dos grandes temas recorrentes na história da Humanidade. E, nas últimas décadas, a ciência tem vindo a validar muito da sabedoria ancestral sobre a importância do sono.

As quatro etapas do sono

Depois de finalmente adormecermos, percorremos quatro etapas distintas, cada uma com  

diferentes padrões de ondas cerebrais – que refletem o nível de atividade elétrica do cérebro.

1.      Primeira etapa – Sono leve: transição entre a vigília e o sono. Ainda é fácil acordar; os olhos e os músculos continuam a mover-se.

2.      Segunda etapa – Sono moderado: o movimento ocular abranda até parar; a temperatura corporal começa a baixar.

3.      Terceira etapa – Sono profundo (ou sono delta): o cérebro produz ondas lentas e amplas. Nesta fase, os movimentos oculares e musculares cessam quase por completo, e acordar é muito difícil. Se o fizermos, sentimo-nos desorientados. É nesta etapa que ocorrem fenómenos como o sonambulismo e o falar durante o sono.

 

Nota: embora se diga que os sonâmbulos não devem ser acordados, é mais seguro acordá-los com suavidade e levá-los de volta à cama, devido ao risco de comportamentos imprevisíveis.

 

4.      Quarta etapa – Sono REM (Rapid Eye Movement): inicia-se a cerca de 90 minutos após adormecermos. A respiração acelera, a pressão arterial e os batimentos cardíacos aumentam, e as ondas cerebrais tornam-se semelhantes às do estado da vigília. Nesta fase os músculos ficam paralisados. É também quando ocorrem a maioria dos sonhos – e é mais fácil recordá-los se formos acordados neste momento.

Sono, memória e função cognitiva

A ciência começa também a desvendar a ligação entre o sono e memória. Um estudo recente da Universidade da Califórnia, em Berkeley, revelou uma correlação entre privação de sono e défices de memória, relacionados com a acumulação da proteína beta-amiloide – tida como uma das causas da doença de Alzheimer.

A prática das sestas ainda carrega o estigma cultural de preguiça, mas os seus benefícios são conhecidos por muitos líderes ao longo da história:

-  Margaret Thatcher exigia não ser incomodada entre as 14h30 às 15h30.

- John F. Kennedy fazia uma longa soneca diária (e tinha uma cama no Air Force One).

- Charlie Rose, apresentador, que jura fazer até três sestas por dia para estar no seu melhor no ar, chegou a dormir no carro (com uma máscara de olhos) a caminho de entrevistar Vladimir Putin em Moscovo, em 2015.

- Winston Churchill é considerado o inventor do termo “sestas de energia”.

-  O Papa Francisco não foi apenas um líder espiritual global, foi também um embaixador itinerante das sestas. “Eu tiro os sapatos”, disse o Papa, “e deito-me na cama para descansar”.

- E outro líder espiritual, o Dalai Lama, compreende tanto o poder de uma sesta como o do sono em geral.

No reino animal, o sono também é essencial. O poder do sono no reino animal é exemplificado pela chita. É o animal terrestre mais rápido do planeta – capaz de acelerar de zero a 96 Km por hora em apenas três segundos – dorme até 18 horas por dia.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

 

 

(In “Jornal Fórum Covilhã”, de 25-06-2025)

 

20 de junho de 2025

ADORMECER EM SERVIÇO

 

Recentemente, li no meu jornal de eleição, um artigo intitulado: “Adormecer em serviço é grave? Na GNR é crime e dá direito a julgamento”.

A leitura trouxe-me à memória alguns episódios, uns hilariantes, outros mais sérios, que recordo de experiências pessoais e que já relatei em artigos e livros.

No artigo de Ana Henriques, no Público, referia-se que a GNR instaura processos-crime a militares apanhados a dormir em serviço, mesmo quando sujeitos a jornadas prolongadas.

“Uma só condenação, alerta o líder da Associação de Profissionais da Guarda, pode deitar por terra a carreira de um guarda exemplar”. Um dos casos mais recentes deu-se na zona fronteiriça de Serpa, numa madrugada próxima do Natal de 2023. Um cabo e três guardas andavam em missão de vigilância há vários dias por causa de um gang, que tinham andado por ali a assaltar residências. Estranhando o silêncio nos rádios-patrulha, cinco colegas foram à sua procura. Eram 2h50 quando encontraram, num sítio ermo junto a um cruzamento na zona de São Marcos, dois veículos de serviço com os militares reclinados lá dentro. As “flashadas” que deram com as lanternas à primeira dupla não surtiam efeito. “Tentámos fazer algum barulho, de forma a não os assustar, pois poderiam ter algum tipo de reação adversa”, resume o relatório oficial dos acontecimentos feito por um dos homens, que se disse incrédulo com o que tinha presenciado. Foi preciso esperarem 15 minutos para que despertassem. Já os militares do segundo veículo “acordaram sobressaltados e de imediato” com as “flashadas”, tendo os seus ocupantes “justificado a situação com o cansaço”.

Dadas as circunstâncias, três magistrados – entre os quais um juiz militar – decidiram absolver os arguidos, que contam com vários louvores no currículo, do crime do incumprimento dos deveres de serviço, até porque não ficou provado que todos os quatro estivessem adormecidos.

No nº. 107, de julho a setembro de 2017, d’ O Combatente da Estrela, publiquei um artigo sob o título “A sentinela dormia”. Numa forma preambular, fazia então referência à “violação dos perímetros de segurança dos Paióis Nacionais de Tancos e o arrombamento de dois “paiolins”, tendo desaparecido granadas de mão, munições e granadas foguete anticarro”. No Público de 2 de julho desse mesmo ano referia em título de grandes parangonas: “Tancos esteve 20 horas sem ronda de vigilância na noite do assalto”.

Ao escrever este texto recordei-me de algo ocorrido comigo quando cumpria serviço militar obrigatório no Regimento de Artilharia Ligeira (RAL 4), em Leiria, no contexto de segurança.

Estávamos em 1969, e, de serviço de Sargento de Dia, coube-me também nesse dia a obrigação de fazer a ronda noturna a uma zona de paióis e guarda de obuses obsoletos, fora da cerca do quartel, numa distância de cerca de um km. Eram umas quatro horas da manhã. Ao aproximar-me do local onde estaria a sentinela, que não dava sinal de vida, e estava escuro, fui-me aproximando, já receoso não me fosse pregar alguma partida, já que não respondia à minha voz que lhe lançava – “Sargento de Ronda!!!”, com a senha que me deveria responder para depois eu concluir com a contrassenha.

Continuei a caminhar, cada vez mais devagar, até que lobriguei, mais adiante, deitado no chão (era verão), a sentinela com a arma G3 a seu lado, enquanto ressonava.

- Este gajo está a dormir, porra!  - Disse para comigo. Agarrei na G3 e deixei-lhe ficar só o capacete. Dei-lhe dois pontapés – e nada! Dei-lhe dois mais fortes – e nada!

De pistola à cintura e a G3 ao ombro regressava ao quartel para apresentar o caso ao oficial de dia.

Num reflexo de não querer prejudicar o militar, voltei atrás – ele continuava a dormir – e entrei na caserna onde estavam seis soldados a dormir nas camaratas de ferro. Como lhes acendi a luz, perguntei se estava tudo bem. Disseram-me que sim. Mostrei-lhes a G3 da sentinela e disse-lhes que ia entregá-la ao oficial de dia.

Eles lá foram acordar o soldado em transgressão, enquanto eu regressava ao quartel. Dei então conta que a sentinela veio atrás de mim a pedir desculpa, por todos os santos, e a  pedir-me a arma. Anuí por complacência e não registei nada no relatório do serviço.

Ainda neste contexto, trago parte de uma narrativa sob o título “Estórias com Professores”, que publiquei no Notícias da Covilhã, em 6 de março de 2014.

Lembro ainda uma peripécia dos meus tempos de estudante, no ano letivo de 1959/60 – 2º ano do Ciclo Preparatório. O arquiteto Manuel João Calais dá-nos aula de desenho. Duas horas seguidas, naquele grande salão onde cabiam várias turmas, masculinas e femininas. Início às 14 horas a seguir ao almoço dá o sono ao professor. Sobre a secretária deixa o seu peculiar relógio de bolso. Em certa aula o arquiteto é apanhado a dormir. Três dos seus alunos (João Riscado, da Covilhã; Craveiro, do Tortosendo e Francisco Sales, de Vale de Prazeres) sorrateiramente adiantam-lhe uma hora. Quando toca a campainha para o intervalo, o arquiteto olha para o relógio e, pensando que era o final, manda sair os alunos.

A sua colega, D. Etelvina, que tinha a sua turma ao lado, estranhando a saída mais cedo, pergunta ao professor o que se passava. No entanto, é descoberto o trio chico-esperto e o arquiteto reprova-os aplicando-lhe uma nota baixíssima.

Se fosse nos tempos que correm, isso não seria possível de fazer, penso eu.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

 

(In “O Olhanense”, de 15-06-2025)


6 de junho de 2025

AINDA OLIVENÇA

 

Depois de já me ter reportado a Olivença, cidade portuguesa retida pelos espanhóis, sob o título “Olivença e a Real Politik”, em outubro de 2024, volto à carga sobre um texto inserido no livro de Joaquim Vieira, intitulado “História Libidinosa de Portugal”.

Um indício de adultério na perda de Olivença.

Sucedendo a D. José em 1777, sua filha D. Maria I, a primeira mulher a sentar-se no trono de Portugal, empenhou-se numa política de apaziguamento, com vista a dissipar as tensões acumuladas no reinado do pai – em grande parte devido à inflexibilidade das ações do conde de Oeiras (promovido a marquês de Pombal em 1769).

Isso passou, desde logo, pela dispensa de Sebastião José de Carvalho e Melo da ação governativa, assim como pelo perdão aos dois meninos de Palhavã, exilados havia 17 anos no Buçaco. D. António e D. José não foram, porém, autorizados a regressar de imediato a Lisboa. Já o terceiro menino de Palhavã, D. Gaspar, arcebispo de Braga, que se deslocou à capital para felicitar a sobrinha pela ascensão ao trono, teve de passar por Coimbra antes de finalmente abraçar os meios-irmãos, depois de tanto tempo de forçada incomunicabilidade.

Na reabilitação dos bastardos de D. João V teve papel determinante o rei consorte – e também seu meio-irmão – agora com o título de D. Pedro III, após D. Gaspar (que passou então um ano em Lisboa) interceder a favor deles, por meio do confessor do marido de D. Maria I, o padre José Mayne. E, em janeiro de 1778, os banidos tiveram, por fim, autorização da sobrinha para regressarem ao Palácio de Palhavã, com vista à sua readmissão na corte. Um cronista testemunhou que foram acolhidos em Lisboa num ambiente de grande regozijo e “reintegrados em todas as suas honras, dignidades e prerrogativas”.

Em agosto desse ano, D. António e D. José visitaram D. Pedro III no Palácio de Queluz e, a partir de 1779, o mais velho esteve ao lado do rei consorte em diversas cerimónias religiosas realizadas no Palácio da Ajuda. Tudo indica, aliás, uma enorme proximidade entre o filho legítimo de D. João V e os meios-irmãos, o que remetia ao esquecimento a desconfiança recíproca existente no tempo de D. José I.

Mas a reintegração dos bastardos estava longe de ser total, como anotou, em 1786, o embaixador francês em Lisboa, o marquês Marc-Marie de Bombelles, ao relatar a Paris que não lhes havia sido concedido o tratamento de alteza (pelo que não podiam contactar o corpo diplomático) e que ambos levavam “uma vida muito retirada, muito triste, não tendo recuperado os bens que lhes tinham sido concedidos por seu pai e de que o marquês de Pombal os tinha esbulhado”.

Traumatizada pela desapiedada execução dos Távoras – com a qual nunca terá concordado –, D. Maria I tratou de reabilitar também a memória dos condenados e promover a revisão jurídica do processo, que se saldou pela ilibação de todos os perseguidos, exceto o duque de Aveiro, o único que teria tido responsabilidade na emboscada a D. José. Não se conclui, sequer, que a finalidade da ação consistisse em tirar a vida ao monarca. Julga-se, aliás, que a obsessão da rainha pelo caso, levando-a a revogar uma deliberação penal do pai, terá contribuído para afetar a sua sanidade mental – mais abalada ainda a partir de 1786 com o falecimento do marido –, a ponto de ser considerada inapta para reinar.

Tendo morrido em 1788 o seu primogénito (destino que, em 1763, já tivera o segundo, D. João Francisco, falecido menos de um mês após o nascimento), foi o terceiro descendente, D. João, quem assumiu a governação a partir de 1792, aos 25 anos, e a regência sete anos mais tarde, por absoluta incapacidade da mãe.

Foi já o príncipe regente que, a 4 de fevereiro de 1801, concluiu o processo de reabilitação total dos “tios de Sua Majestade” (como eram designados), D. António e D. José, considerando-os “limpos de toda a mancha” quanto aos crimes que o marquês de Pombal lhes imputara quatro décadas antes e enaltecendo “a regularidade de suas vidas e a pureza de seus costumes, em todo o tempo exemplares”.

D. António, falecido no ano anterior (já como cavaleiro da Ordem de Cristo), não pôde sentir o consolo, mas D. José (cavaleiro da Ordem de Avis desde 1789) ainda beneficiou do novo estatuto, vindo a morrer meses mais tarde, aos 81 anos. Foram ambos sepultados no panteão dos Braganças, na Igreja de São Vicente de Fora, em Lisboa, em túmulos situados frente a frente.

O príncipe D. João, nesse mesmo ano de 1801, teve de lidar com mais um confronto armado entre Portugal e Espanha, do qual resultaria a perda permanente da praça de Olivença pelo mais pequeno dos países ibéricos (apesar de posteriores tratados internacionais obrigarem Madrid à sua devolução – o que nunca veio a suceder).

A designação da breve contenda poderá ter radicado em mais um caso de adultério régio, desta vez do lado de lá da fronteira. A 20 de maio, o exército espanhol desencadeou no norte do Alentejo uma ofensiva relâmpago sob a direção do próprio primeiro-ministro do rei Carlos IV, Manuel de Godoy, de quem se dizia ser amante da rainha, Maria Luísa de Parma. A ela, ele terá enviado um ramo de laranjeira colhido nos arredores de Évora para  informá-la da conquista de Olivença. Por essa razão, o conflito terá ficado conhecido como a Guerra das Laranjas.

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “Jornal Fórum Covilhã”, de 04-06-2025)