6 de março de 2025

A VERDADE

 

“Por vezes, encontrar a verdade é muito mais difícil do que localizar um equívoco. Um erro tem uma manifestação mais evidente, é mais sibilante, vem à tona mais expressivamente. Já a exatidão se encontra em camadas mais profundas” – Mário Sérgio Cortella.

Frequentemente, sentimos que nos afogamos num mar de informações. Somos constantemente bombardeados por notícias de fontes inesgotáveis como jornais, revistas, rádio, podcasts, blogs, redes sociais e outras plataformas digitais. Nenhum de nós deseja ser enganado, mas distinguir a verdade da mentira é um desafio cada vez maior.

No antigo regime ditatorial, os portugueses eram iludidos quanto às perdas humanas nas antigas colónias, resultantes da Guerra do Ultramar. As famílias viviam entre o medo de jamais reverem os seus entes queridos e a esperança do seu regresso. Informações manipuladas ocultavam a verdadeira dimensão das baixas militares. Quando ocorriam um elevado número de mortes numa única operação militar, a censura impunha que a comunicação social divulgasse os falecimentos de forma espaçada, criando a ilusão de perdas menores e diluídas no tempo.

A nossa própria História de Portugal, desde os bancos do ensino primário, sempre exaltou um amor incondicional à Pátria, muitas vezes omitindo verdades incómodas.

Um dos exemplos mais paradigmáticos é o desaparecimento do rei D. Sebastião na Batalha de Alcácer Quibir, no dia 4 de agosto de 1578. Liderando pessoalmente as tropas portuguesas, D. Sebastião desapareceu no campo de batalha, e o seu corpo nunca foi identificado com segurança. Existem várias versões sobre o seu destino, sendo a mais aceite a de que morreu em combate e o seu corpo ficou irreconhecível entre os milhares de mortos. 

Algumas fontes relatam que os marroquinos entregaram um corpo que supostamente seria o do rei, que foi depois levado para Portugal e sepultado no Mosteiro dos Jerónimos. No entanto, nunca houve provas conclusivas de que os restos mortais pertenciam de facto a D. Sebastião. O jornal A Capital, na edição de 22 de agosto de 1989, citava o diário marroquino Le Matin de Sahara, de Casablanca, que afirmava ter documentos provando a entrega do corpo do rei ao governador português de Ceuta. O documento era assinado por D. Leonis Pereira, capitão e governador da praça, D. Rodrigo de Menezes e frei Roque de Spiritu Sancto, e indicava que o corpo fora depositado com solenidade no Mosteiro da Santíssima Trindade, entregue por André Gaspar Corso, numa quarta-feira, dia 6 de dezembro de 1578, nas portas da cidade, pelas 10 horas da manhã. Segundo o jornal marroquino, Portugal teria criado várias versões para manter vivo o mito sebastianista, pois aceitar a derrota era impensável para os responsáveis da época.

Independentemente da verdade, o desaparecimento de D. Sebastião originou o Sebastianismo, crença segundo a qual o rei teria sobrevivido e regressaria um dia para restaurar a glória de Portugal.

Outro caso enigmático envolve os restos mortais de D. Nuno Álvares Pereira (1360 – 1431). Após a sua morte, foi sepultado no Convento do Carmo, em Lisboa, mas o Terramoto de 1755 destruiu parcialmente o convento e o seu túmulo. Em 1951, os seus restos mortais foram transladados para a Igreja do Santo Condestável, também em Lisboa. No entanto, devido à destruição causada pelo terramoto e às sucessivas trasladações, não é possível afirmar com certeza se os ossos depositados pertencem de facto ao Condestável.

Já a sepultura de Luís de Camões no Mosteiro dos Jerónimos baseia-se em presunção, pois nunca houve confirmação sobre a identificação dos seus restos mortais. Camões faleceu em 10 de junho de 1580, em Lisboa, em condições de extrema pobreza. Terá sido sepultado numa campa rasa na Igreja de Santa Ana, em Lisboa, ou no cemitério dos pobres do hospital local. Com o Terramoto de 1755, os túmulos que ali estavam perderam-se, incluindo o de Camões. Foram feitas tentativas para se reencontrar os despojos de Camões, todas frustradas. A ossada que foi depositada em 1880 numa tumba do Mosteiro dos Jerónimos é, com toda a probabilidade, de outra pessoa.

Por último, o corpo de Fernão de Magalhães nunca foi recuperado após a sua morte. Ele faleceu em 27 de abril de 1521, durante a Batalha de Mactan, nas Filipinas. Após o confronto, os guerreiros locais recusaram-se a entregar o seu corpo aos espanhóis, impossibilitando qualquer cerimónia fúnebre ou sepultamento adequado.

João de Jesus Nunes 

jjnunes6200@gmail.com

(In “O Olhanense”, de 01-03-2025)


19 de fevereiro de 2025

EUFEMISMOS

 

Muitas vezes, ao folhear antigas compilações, deparo-me com textos que despertam novas reflexões. Foi o que aconteceu recentemente, quando me veio à mão um artigo de Fernanda Sampaio, publicado no Jornal do Fundão há décadas, abordando o tema dos eufemismos. Embora o texto tenha sido escrito num outro tempo, a verdade é que a tendência de suavizar a realidade através da linguagem continua mais viva do que nunca. 

A sociedade sempre encontrou formas de amenizar as palavras para tornar certas verdades mais aceitáveis. Mas, se antes os eufemismos surgiam sobretudo por questões de pudor ou respeito, hoje parecem multiplicar-se para mascarar realidades desconfortáveis. As coisas continuam as mesmas, apenas disfarçadas por novas designações.

Nos dias de hoje, o simples ato de substituir uma palavra pode transformar completamente a perceção de um conceito. Já não há desempregados, mas sim pessoas “em transição de carreira”. As escolas degradadas passaram a ser “estabelecimentos de ensino em requalificação”. Até os bêbedos passaram a ser chamados de alcoólicos e os drogados, toxicodependentes. Os doentes nos hospitais e centros de saúde agora são utentes. Os trabalhadores foram dispensados em vez de despedidos. Parece que, ao alterar as palavras, suavizamos a realidade, mas será que mudamos verdadeiramente o que está por detrás delas?

Os eufemismos infiltraram-se em todas as áreas do quotidiano. Nos discursos políticos, os “ajustes fiscais” escondem aumentos de impostos, e “as medidas de contenção” significam cortes nos serviços públicos. No mundo empresarial, um “despedimento coletivo” é apresentado como “reestruturação organizacional”.

A linguagem burocrática também encontrou nos eufemismos uma forma de disfarçar a rigidez do sistema. Os idosos são “seniores”, os pobres são “economicamente desfavorecidos” e as crianças com dificuldades escolares são “alunos com necessidades educativas específicas”. No fundo, cria-se um vocabulário que, em vez de resolver os problemas, apenas os disfarça.

Com a revolução digital e o crescimento da Inteligência Artificial, os eufemismos ganham novas dimensões. Já se fala em “profissões do futuro”, quando, na realidade, muitas funções atuais simplesmente desaparecerão. A própria IA é apresentada como uma “assistência cognitiva”, quando, na prática, está a substituir cada vez mais a intervenção humana. 

Foi com bastante interesse sobre este tema que foi debatido o programa da RTP 1 “É ou não é”, com o jornalista e apresentador Carlos Daniel, na noite do passado dia 4 de fevereiro. Falou-se: “Novos empregos que vão surgir e outros que vão desaparecer” – “Futuro Trabalho: Há emprego para todos?”. E, na Antena 1, da manhã do dia seguinte, o debate no programa “Consulta Pública”, moderado pela jornalista Sofia Freitas, onde se referia também a criação do Chat GTP português “Amália”. Temas de grande relevância para os tempos atuais.

Como bem refere António Barreto, no Público, “o mundo sempre mudou, mas hoje muda a uma velocidade que não permite adaptação”. No meio deste turbilhão, resta-nos questionar: estamos apenas a mudar palavras ou a esconder realidades? Talvez seja tempo de refletir sobre o verdadeiro impacto dos eufemismos na forma como percebemos o mundo.


João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com


(In “O Olhanense”, de 15-02-2025)



13 de fevereiro de 2025

JORNAL DO FUNDÃO SEMPRE NO TEMPO DO SEU TEMPO

 

Nasceu dois meses antes de mim. Desde a minha adolescência e juventude, logo que comecei a ler o primeiro jornal, ainda uma criança, por sinal, um diário, acompanhei o que se escrevia no Jornal do Fundão. Foi então na Biblioteca Municipal da Covilhã, situada frente ao Jardim Público, para onde ia estudar. Estava ávido de notícias novas sobre a Covilhã e região, onde se falava também muito das vedetas do meu clube de sempre. Com o passar do tempo, temas marcantes começaram a captar a minha atenção: a Região Beirã, a Serra da Estrela e a vida citadina da época. Acompanhava de perto a atividade académica do Liceu, da Escola Industrial e Comercial Campos Melo e do Colégio Moderno, bem como as festividades da sede e das aldeias do concelho. Não faltava falar das Feiras Popular, de São Tiago e de São Miguel. Também os acidentes rodoviários, e de aviação, como a queda da avioneta onde ia o Matos Soares; e os dois autocarros que, por duas vezes, bem distanciadas as datas, se despenharam na Serra da Estrela. Sem esquecer as mensagens dos que se encontravam nas guerras do Ultramar; o sentimento nostálgico dos emigrantes, e, mais tarde, o flagelo dos incêndios na Serra da Estrela.

Em tempo de ditadura, as notícias, possíveis, sobre as candidaturas à presidência da República, onde ressaltou a do general Humberto Delgado. Mas também a visita ao Jornal do Fundão do então ex-presidente da república brasileira, Juscelino Kubitschek de Oliveira, em janeiro de 1963, a convite do Diretor do Jornal, António Paulouro. O ditador Salazar ficou furioso e nunca mais esqueceu a partida que o grande estadista e o grande jornalista lhe pregaram, ordenando a censura de qualquer referência à visita.

Depois o grito pungente perante o problema da silicose nas Minas da Panasqueira. Vim a conhecer os efeitos nefastos desta doença profissional já na minha então nova profissão, pagando pensões de viuvez a várias viúvas, mulherzinhas pobres vindas das aldeias do Couto Mineiro.

Sem esquecer a persistência para que se abrisse um túnel na Serra da Gardunha – o Túnel da Gardunha; assim como a defesa da necessidade de renovar a linha da Beira Baixa, da eliminação do serpentear de estradas escabrosas do acesso rodoviário a esta região, com a construção de uma via rápida do Portugal Sul para o Portugal Interior e vice-versa, não faltando as terras com a necessidade de um regadio, donde viria a surgir o Regadio da Cova da Beira. E por aí fora. 

Numa retrospetiva, durante o meu serviço militar, e por períodos um pouco mais longos de ausência da Covilhã, pedia para me enviarem o Jornal do Fundão.

Acompanhei também a suspensão deste semanário pelo Estado Novo quando, à saída da Câmara Municipal da Covilhã, onde então me encontrava a trabalhar, o porteiro mostrava o jornal onde vinha a notícia sobre o Grande Prémio de Novela atribuído pela Sociedade Portuguesa de Autores ao escritor Luandino Vieira que se encontrava detido no Tarrafal por atividades consideradas subversivas pelo regime. Soube-se então que esse “crime” de divulgação pelo Jornal do Fundão lhe custaria uma longa suspensão – seis meses. Estávamos no mês de maio e, nessa altura, eu participava pela equipa do Estrela de São Pedro, no Torneio Primavera, em andebol, no Pavilhão do Clube Desportivo da Covilhã, nos Penedos Altos. Num dos intervalos recordo-me da preocupação que envolvia colaboradores do Jornal do Fundão, como os falecidos António José Martinho Marques e Francisco Marques Portela, assim como o José Pinheiro da Fonseca, com a suspensão deste semanário, sugerindo uma subscrição para colmatar este problema grave originado pela ditadura salazarista. 

Seria demasiado extenso enumerar todas as ações do Jornal do Fundão ao longo do tempo, mas não posso olvidar as páginas culturais na leitura de crónicas de Arnaldo Saraiva, Baptista Bastos, já falecido, ou Carlos Esperança, e muitos outras ilustres figuras da Cultura portuguesa, que me encheram de interesse pelas mesmas. 

Acompanho com interesse os textos de Nuno Francisco, Maria Antonieta Garcia e Luís Pereira Garra, assim como, quando em vida, acompanhava os de Fernanda Sampaio, José Pedro Machado e Ernesto de Melo e Castro. Não nomeio todos, mas respeito diferentes estilos, mesmo aqueles que não são da minha preferência. 

Embora não seja o periódico onde tenho mais textos publicados, ainda assim registo sete dezenas de páginas onde tive o privilégio de ver colaboração que me diz respeito. 

Está de parabéns o Jornal do Fundão. Desejo que se mantenha mesmo neste mar encapelado a prosseguir entre a revolução do papel e do digital, em prol dos interesses deste interior beirão. 


João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “Jornal do Fundão”, de 13-02-2025)


5 de fevereiro de 2025

A BANDA QUE PASSA

 


Quando começar a ler esta crónica já foi arrancada mais uma folha do calendário. Janeiro, implacável, dissipou-se. Deixou o início do ano gélido e perigoso.

Entre tempestades e bonanças, vamos caminhando neste mundo e, para nós, no país mais antigo da Europa. No meio deste cenário de turbulências políticas e sociais, a vida segue o seu curso, tal como uma banda que passa, cantando coisas de amor e, quem sabe, também de ironia.

Enquanto os dias avançam, surge um país inquieto, onde políticos e cidadãos assistem, cada um à sua maneira, ao desenrolar dos acontecimentos.

Chico Buarque vem para esta metáfora como o impulsor: “Estava à toa na vida/O meu amor me chamou/ Pra ver a banda passar/ Cantando coisas de amor”. 

A flauta, o clarinete, a trompete e o trombone integram-na melodiando a descida da criminalidade violenta na área de responsabilidade do Comando Metropolitano de Lisboa (COMETLIS) da Polícia de Segurança Pública. Diz respeito ao ano passado em relação a 2023.

A banda continua na sua marcha: “A minha gente sofrida/Despediu-se da dor/Pra ver a banda passar/Cantando coisas de amor”.

Com este estribilho, corre Carlos assustado, deixa cair as Moedas, afrontado. Nem sequer vê o bombo e, muito menos o tambor. Mas logo agarra nos pratos e grita que não é verdade. É um inconcebível lapso do subintendente Rui Costa. “Estes números são positivos, mas não nos tranquilizam. Há fenómenos que existem quer na cidade de Lisboa, quer nos concelhos limite, que nos levam a ter algumas preocupações e cautela em desenhar outro tipo de estratégias no combate ao crime”.  

E a banda prossegue: “O homem sério que contava dinheiro parou/O faroleiro que contava vantagem parou/ A namorada que contava as estrelas/ Parou para ver, ouvir e dar passagem”. 

Ter-se-á recordado do homem de Boliqueime. Em 2004 dizia que estava a aplicar-se à vida política a lei económica de Gresham, segundo a qual “a má moeda expulsa a boa moeda”, ou, neste caso, “os agentes políticos incompetentes afastam os competentes”.

A banda continua: “A moça triste que vivia calada sorriu/A rosa triste que vivia fechada se abriu/E a meninada toda se assanhou/ Pra ver a banda passar/cantando coisas de amor”.

O som, agora mais voltado para a improvisação e harmonia. Além-fronteiras, Donald Trump, sempre pronto para o espetáculo, sopra no saxofone e carrega na bateria, depois de ter ensaiado o regresso ao palco. Tenta afugentar os “forasteiros” que o incomodam. Começa a tentar organizar uma enorme orquestra. Para agradar a todos os humanos.

“A minha gente sofrida/Despediu-se da dor/Pra ver a banda passar/Cantando coisas de amor”.

Quere a Gronelândia e o Canal do Panamá, por isso, a banda canta-lhe: “O velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou/Que ainda era moço pra sair do terraço e dançou/A moça feia debruçou na janela/Pensando que a banda tocava pra ela”.

É então que surge Miguel Arruda, protagonista dos furtos nas zonas de bagagem açorianas, sem vigilantes. Surripia malas. É o pilha-galinhas da política nacional, lembrando-nos que neste país de brandos costumes, nem sempre a vigilância está onde deveria estar.

“A marcha alegre se espalhou na avenida e insistiu/A Lua cheia que vivia escondida surgiu/Minha cidade toda se enfeitou/Pra ver a banda passar cantando coisas de amor”.

É quando Mariana Mortágua vem, finalmente, reconhecer “erros” e “falhas” do partido no processo de despedimentos de trabalhadores na sequência da queda eleitoral. 

Entre escândalos e pequenas tragédias, a banda continua a tocar, indiferente às histórias que se cruzam no seu caminho.

Finalmente:

“Mas para meu desencanto/O que era doce acabou/Tudo tomou seu lugar/Depois que a banda passou. / E cada qual no seu canto/Em cada canto uma dor/Depois da banda passar/Cantando coisas de amor”.


João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com


(In “Jornal Fórum Covilhã”, de 05-02-2025)


3 de fevereiro de 2025

A FRAUDE EM SEGUROS

 

A fraude em seguros é um fenómeno que afeta profundamente o setor segurador e a sociedade em geral. Este problema, embora não seja novo, tem evoluído em sofisticação e impacto, exigindo ações cada vez mais coordenadas e eficazes para ser combatido. Falamos mais na fraude detetada mas esquecemo-nos da fraude executada. Nessa medida, o crescimento da fraude em Portugal pode ser mais acentuado na deteção.

Segundo dados da Associação Portuguesa de Seguradores (APS) e do OBEGEF – Observatório de Economia e Gestão de Fraude (associação privada sem fins lucrativos, sediada na Faculdade de Economia da Universidade do Porto), o custo das fraudes identificadas representa uma percentagem significativa das despesas do setor, afetando diretamente os preços das apólices e a confiança dos consumidores. 

Conforme é referido no livro que publiquei em julho de 2018, sob o título “O Documento Antigo – Uma outra forma de ver os Seguros”, a fraude em seguros pode ocorrer em diversas formas, desde pequenas distorções de informações no momento da contratação até esquemas organizados que envolvem falsificação de sinistros. Um exemplo comum é o agravamento intencional de danos para obter indemnizações maiores, uma prática que, embora aparentemente inofensiva, tem impactos acumulativos que oneram todo o sistema. Em muitos casos, essas fraudes são facilitadas pela dificuldade de deteção e pela perceção de impunidade. 

A fraude não é apenas um problema financeiro, mas também ética, pois compromete a relação de confiança entre seguradoras e segurados. Este cenário torna-se ainda mais preocupante quando consideramos o papel das redes organizadas, que utilizam técnicas avançadas para explorar falhas nos sistemas de segurança e condescendência das empresas. 

Os efeitos da fraude em seguros vão além dos prejuízos financeiros diretos. Para os segurados, isso significa prémios mais elevados e uma maior desconfiança no sistema. Para as seguradoras, a fraude compromete a sua capacidade de oferecer produtos competitivos e sustentáveis. Em última instância, toda a sociedade é impactada, já que os recursos que poderiam ser investidos em inovação e em melhoria de serviços são canalizados para cobrir as perdas decorrentes de práticas fraudulentas.

É o caso das reparações efetuadas do ramo automóvel, onde existe a perceção de serviços de peritagem de algumas seguradoras se envolverem duma forma sub-reptícia por forma ardilosa de enganar o segurado lesado para benefício próprio.

Combater a fraude em seguros requer uma abordagem integrada que combine tecnologia, regulação eficaz e consciencialização. Ferramentas de análise de dados e inteligência artificial têm sido cada vez mais utilizadas para identificar padrões suspeitos e prevenir fraudes antes que elas ocorram. Além disso, o fortalecimento de legislação e a cooperação entre entidades públicas e privadas são fundamentais para criar um ambiente menos permissivo.

Outro aspeto crucial é a educação do público. Campanhas de consciencialização podem ajudar a esclarecer as consequências da fraude para os indivíduos e para o sistema como um todo, desestimulando comportamentos fraudulentos e promovendo uma cultura de transparência.

O cliente, que sempre agiu de boa-fé, e se vê enganado, no âmbito de um polvo que lhe dificulta todos os meios de defesa dos seus direitos, jamais pode ver a imagem da seguradora como sua defensora em situações de apuro, como é um sinistro. 

A fraude em seguros é um desafio complexo, mas não intransponível. Combinando tecnologia, regulação inabalável e um compromisso ético de todos os envolvidos, é possível reduzir significativamente o impacto deste problema. Como autor e estudioso da área, reafirmo a importância de um reforço coletivo para transformar o setor de seguros num exemplo de integridade e eficácia. Afinal, a confiança é o pilar fundamental que sustenta toda a estrutura deste mercado.

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “O Olhanense”, de 01-02-2025)


21 de janeiro de 2025

CRÓNICA PARA INÍCIO DO ANO: DOS “CISNES NEGROS” ÀS PERCEPÇÕES

 

Desde que me retirei da vida profissional, há mais de 12 anos, mantenho-me intelectualmente ativo. Escrever é para mim, algo que cultivo há seis décadas. Este amor pelos livros levou-me a doar parte do meu acervo a bibliotecas e instituições. Muitos livros foram acolhidos por bibliotecas municipais de diversas regiões do país, enriquecendo o património cultural dessas localidades.

Contudo, mais de um milhar de obras tiveram outro destino: o Banco Alimentar Contra a Fome, na Cova da Beira. Ali, foram integrados na recolha de papel, cuja venda reverte para causas de solidariedade social. Esta decisão, embora necessária, deixou-me com uma certa melancolia e, literalmente, uma hérnia discal como lembrança. Doar os livros foi um ato de desprendimento, mas também uma forma de perpetuar o valor do conhecimento que tanto prezo. Mesmo assim, as estantes da minha biblioteca ficam ainda repletas de obras, tematicamente selecionadas. 

Graças a Deus, consegui já ultrapassar a esperança de vida que, segundo dados recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE), no triénio de 2021-2923, foi estimada, para os homens, em 78,37 anos, com a possibilidade de exceder este valor dependendo das condições individuais, como é óbvio.

Cisnes Negros e a Incerteza

Quantos “cisnes negros” nos esperam em 2025? Esta expressão, popularizada por Nassim Nicholas Taleb, simboliza acontecimentos imprevisíveis e de grande impacto, capazes de desestruturar o estabelecido. A sua origem remonta ao século XVII, quando a descoberta de cisnes negros na Austrália desafiou a crença de que todos os cisnes eram brancos.

Em 2024 tivemos uma amostra clara dessa realidade. Desde as alterações climáticas extremas, como o ano mais quente já registado, até acontecimentos geopolíticos e sociais inesperados, vivemos numa época em que a incerteza parece dominar. Esses eventos forçam-nos a refletir sobre a fragilidade dos nossos sistemas e a urgência de nos adaptarmos a um futuro cada vez mais imprevisível.

Percepções e a Atualidade

Outro tema que marcou o final de 2024 foi a discussão em torno das “percepções”. Exemplos não faltam: uma das ideias que ganhou força é a de que estrangeiros em situação irregular são os principais responsáveis pela sobrecarga do Serviço Nacional de Saúde (SNS). No entanto, estudos e dados concretos muitas vezes não sustentam essas afirmações, mas as percepções, ampliadas por discursos e “memes” digitais, acabam por moldar opiniões e políticas.

Como bem observa José Pacheco Pereira, vivemos numa era em que os “memes” substituem o pensamento crítico e dominam o debate público. Este fenómeno destaca a importância de questionarmos as informações que consumimos e de incentivarmos uma sociedade mais reflexiva e menos reativa. As percepções, quando mal direcionadas, podem transformar-se em preconceitos que perpetuam desigualdades e distorcem a realidade.

Ao iniciarmos um novo ano, somos chamados a olhar para o futuro com um misto de esperança e pragmatismo. As memórias que carregamos e os desafios que enfrentamos devem servir de guia para construir um caminho mais consciente e adaptável. Sejam os “cisnes negros” ou as percepções equivocadas, cada um de nós tem um papel na forma como lidamos com o inesperado e como criamos um mundo mais equilibrado.

Votos de um Feliz Ano 2025.


João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “O Olhanense”, de 15-01-2025)


8 de janeiro de 2025

QUANDO A MARCHA ATRÁS DEIXA DE SER UMA MANOBRA PERIGOSA


Chegou ao fim o ano mais quente das nossas vidas. O primeiro em que a temperatura média da Terra subiu 1,5 graus Celsius. Em 2024, acumulámos recordes climáticos indesejáveis e falhanços em cimeiras dedicadas ao ambiente. A única atmosfera de que dispomos está saturada de carbono e isso irá tornar a Terra cada vez mais inóspita para quase todos os seres vivos. Proveniente de quem sabe, estamos a andar para trás, recuando ao ritmo de crescimento da pré-pandemia. 

Este ano de 2025 reserva novas oportunidades de negociação internacional na área climática. Cientistas, ativistas, decisores políticos e ambientalistas já estão com os olhos postos na COP30, que terá lugar em Belém, no Brasil. Até fevereiro líderes políticos de todo o mundo devem fazer as suas promessas climáticas que se querem mais ambiciosas possível.

Pergunto muitas vezes no âmago dos meus pensamentos, se os responsáveis no âmbito da Humanidade, a começar por cada um de nós, preferem o seu desaparecimento à face da Terra, mais acelerado, ou viver nos limites para que fomos criados. Estamos, de facto, num mundo de contradições.

O ano que findou não nos deixou saudades. Foi uma galeria de horrores, sobejamente conhecidos: a guerra da Ucrânia continuou e até se intensificou com soldados norte-coreanos servindo de carne para canhão de Putin e ataques ucranianos dentro das fronteiras russas. O conflito entre Israel e Hamas estendeu-se também numa luta com o Hezbollah no Líbano e o Irão. Cerca de 100 reféns continuam aprisionados e maltratados em Gaza. A Síria depôs um ditador sanguinário. Pela segunda vez, os troca-tintas americanos, neste vendaval internacional, elegeram para a Casa Branca um agressor sexual. 

Confesso-me dececionado com a conduta de tantas gentes pensantes, que mais parecem banhados de uma ingenuidade galopante, que chegou ao nosso País de brandos costumes, frase que ainda costuma ser vezeira em ocasiões de oportunidade.

A rusga na Mouraria, com as reações à foto de dezenas de imigrantes alinhados contra a parede na Rua do Benformoso foi a vergonha nacional deste nosso governo. Muito se falou e rios de tinta correram pelos jornais.  As televisões marcaram a sua presença para destacar o lamentável espetáculo jamais visto neste País que se diz sabe acolher os imigrantes.   Eu ainda há poucos meses percorri essa rua para as comemorações do centenário da Casa da Covilhã, sediada no nº. 150-1º. B, sem problemas. Obviamente também sem o aparato policial no Martim Moniz que lembra o pior do século XX, nas palavras da deputada socialista Isabel Moreira. Podemo-nos recordar dos imigrantes, 50 ano depois, como se fez com os retornados das ex-colónias. A tónica das políticas públicas para os imigrantes tem que passar pelo emprego, no alojamento e nas qualificações, ao invés das operações policiais.

Mas disto já todos estamos fartos de ver, ouvir e ler, aqui para quem está interessado em analisar opiniões jornalísticas.  

Agora volto-me para um tema que se tornou escaldante durante vários anos.  Afetou economias de particulares e empresariais de muitos portugueses, e não só – que dá força ao título desta crónica – as SCUT – Autoestradas sem custo para o utilizador. 

Tiveram início em Portugal em 1997, durante o governo liderado por António Guterres. O objetivo principal desse modelo era promover o desenvolvimento regional e a coesão territorial, garantindo o acesso a infraestruturas modernas sem custos diretos para os utilizadores, financiadas pelo Estado através de receitas fiscais. Em 2010, no contexto da crise económica e de ajustamentos financeiros, o governo liderado por José Sócrates iniciou a introdução de portagens nas SCUT’s transformando-as em autoestradas pagas, com base no princípio do utilizador-pagador. Esta mudança gerou longos e inúmeros debates e protestos. 

Levou 13 anos para que o governo revertesse a controversa decisão de portajar as SCUTs. Finalmente os viajantes podem usufruir da A23 e A25 sem custos diretos, aliviando os bolsos de quem depende dessas vias. Aquela manobra perigosa, dos nossos governos, conseguiu fazer uma marcha-atrás sem perigosidade. 

Foi uma luta quase insana liderada pela Plataforma Pl’a Reposição das SCUTS, voltando agora a poder circular -se na A23 e na A25, sem custos diretos, como se reclamava desde o dia 8 de dezembro de 2011. E, para encanto e glória dos malfeitores de lideranças governamentais, tínhamos as portagens mais caras de todas as ex-SCUTS do País. Mas por que cargas de água isso aconteceu? Inacreditável!

Apesar dos desafios enfrentados, tanto globais como locais, há razões para acreditar que a marcha-atrás pode ser mais que uma metáfora – pode ser um caminho real para mudança e progresso. 

Votos para que 2025 venha a ser um ano que nos traga mais esperança num novo mundo, pleno de paz e amor entre todos os habitantes do Planeta.


João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com


((In “Jornal Fórum Covilhã”, de 08/01/2025)