5 de novembro de 2025

OS 40 MÁRTIRES DO BRASIL E O BEATO FRANCISCO ÁLVARES O CARDADOR DA COVILHÃ QUE DEU A VIDA PELA FÉ




 

Em meados do século XVI, Portugal vivia o auge das grandes viagens e da expansão missionária.

Em 1570, um grupo de 40 missionários jesuítas, liderados por Inácio de Azevedo, partiu de Lisboa rumo ao Brasil com o propósito de evangelizar as novas terras. Jovens de várias origens e profissões – estudantes, artesãos, músicos e trabalhadores – formavam aquela que foi a maior expedição missionária jamais enviada por Portugal.

Depois de meses de preparação na Quinta do Val do Rosal, na Charneca da Caparica, a 5 de junho de 1570 embarcaram na nau Santiago. Ao largo das Canárias, a 15 de julho de 1570, foram atacados por corsários franceses comandados por Jacques Soria, um calvinista ao serviço da rainha de Navarra. Recusando renegar a fé, os jesuítas foram assassinados e lançados ao mar, entoando cânticos e orações.

Entre eles encontrava-se Francisco Álvares, natural da Covilhã. Estavam então reunidos os 40 companheiros na nau Santiago.

A 5 de junho do ano de 1570, a armada deixou a barra de Lisboa, rumo ao imenso oceano, que era a estrada que os deveria levar ao Brasil. Levaram sete dias até chegarem à Ilha da Madeira.

Naquele sábado, 15 de julho de 1570, do promissor grupo de 40 missionários, que o padre Inácio de Azevedo preparara tão esforçadamente para evangelizar os territórios do imenso Brasil, só mesmo escapara à morte o irmão João Sanches, que haveria de ser a testemunha do martírio dos 40 companheiros.

Os Mártires

Um cardador que sonhou ser missionário

ÁLVARES, irmão auxiliar, Francisco – português, nascido na Covilhã em 1539, tendo entrado para a Companhia em 1554, em Évora. Era por ofício cardador. A cidade era um dos grandes centros da indústria de lanifícios portuguesa. Dedicava-se à cardação, um ofício modesto, mas essencial, símbolo do esforço e da dignidade do trabalho, partilhando a vida simples e laboriosa dos operários têxteis da sua terra. Homem de fé viva e carácter humilde, sentiu o chamamento de Deus e decidiu consagrar-se à vida religiosa, ingressando na Companhia de Jesus como irmão coadjutor – um dos jesuítas leigos que apoiavam as missões com o trabalho manual e o testemunho de vida.  O seu destino cruzou-se com o padre Inácio de Azevedo, visitador das missões jesuítas no Brasil, que regressara a Portugal para recrutar novos missionários. Francisco Álvares             respondeu ao apelo e alistou-se na expedição missionária, integrando o grupo dos “companheiros do Brasil”, que partiria de Lisboa em 1570.

O martírio em alto-mar

A viagem decorreu sob ameaça constante. As rotas atlânticas eram frequentadas por corsários e piratas, muitos deles a soldo das potências protestantes que viam nos jesuítas inimigos da sua causa.

A 15 de julho de 1570, quando a nau Santiago, comandada por Inácio de Azevedo, navegava ao largo da ilha de La Palma, nas Canárias, foi atacada por corsários franceses sob o comando de Jacques Soria, um calvinista feroz.

Os jesuítas recusaram renegar a fé católica. Um a um, foram mortos e lançados ao mar – alguns ainda com vida – entoando cânticos e orações.

O covilhanense Francisco Álvares foi lançado vivo ao mar.

Os restantes companheiros

ADAUTO, irmão, João – português, de Entre Douro e Minho, sobrinho do capitão da nau Santiago, foi confundido com os jesuítas, mas aceitou o martírio por desejar entrar para a Companhia. Foi lançado vivo ao mar.

ÁLVARES, irmão auxiliar, Gaspar – português, do Porto. Apunhalado, foi lançado vivo ao mar.

ÁLVARES, irmão auxiliar, Manuel – português, de Extremoz, nasceu em 1536 e entrou para a Companhia em 1559, em Évora. Era pastor de ofício. Foi lançado vivo ao mar.

ANDRADE, padre Diogo de – português, de Pedrógão Grande, nasceu em 1531 e entrou para a Companhia em 1558, em Coimbra. Foi soto-ministro no Colégio de Coimbra e depois no de Santo Antão, em Lisboa. Exercia o ofício de ministro. Foi apunhalado e lançado ainda vivo ao mar.

AZEVEDO, padre Inácio de – português, do Porto, nasceu em 1526 e entrou para a Companhia em 1548, em Coimbra. Foi Visitador do Brasil e o mentor do grupo de missionários que levava como Provincial do Brasil, nomeado pelo Padre Geral.

BAENA, irmão auxiliar, Afonse de – espanhol, de Villalobas (Toledo), nasceu em 1539 e entrou para a Companhia em 1567. Era de profissão ourives e foi lançado vivo ao mar.

CALDEIRA, irmão estudante, Marcos – português, de Santa Maria da Feira, nasceu em 1547 e entrou para a Companhia em 1569. Foi lançado vivo ao mar.

CASTRO, irmão estudante, Bento de – português, de Chacim (Macedo de Cavaleiros), nasceu em 1543 e entrou para a Companhia em 1561, em Lisboa. Em 1569, estudava filosofia em Coimbra. Era Mestre de noviços e encarregado da catequese. Ferido com tiros e punhaladas, foi lançado ainda vivo ao mar, sendo o primeiro mártir.

CORREIA, irmão estudante, António – português, do Porto, nasceu em 1553 e entrou para a Companhia em 1569. Estava em oração, quando recebeu violenta estocada na cabeça e foi lançado vivo ao mar.

CORREIA, irmão estudante, Luís – português, de Évora. Foi lançado vivo ao mar.

COSTA, irmão auxiliar, Simão da – português, do Porto, terá nascido por volta de 1551 e entrou para a Companhia pouco antes da viagem. Por ser noviço, ainda não trazia o hábito, no que foi tomado por filho de comerciante. Levado à presença de Sória, confirmou ser missionário, foi degolado e o seu corpo lançado ao mar a 16 de julho.

DELGADO, irmão estudante, Aleixo – português, de Elvas, nasceu em 1555 e entrou para a Companhia em 1569, em Évora. Era excelente cantor e o mais jovem dos mártires. Foi lançado vivo ao mar.

DINIS, irmão estudante, Nicolau – Português de Bragança, nasceu em 1553 e entrou para a Companhia em 1570, em Val de Rosal. Tinha boa arte para representar. Foi lançado vivo ao mar.

ESCRIBANO, irmão auxiliar, Gregório – espanhol, de Viguera (Logroño). Foi lançado vivo ao mar.

FERNANDES, irmão auxiliar, António – português, de Montemor-o-Novo, nasceu em 1552 e entrou para a Companhia em 1570. Em Val de Rosal, era chefe de oficina de carpintaria. Foi apunhalado e lançado vivo ao mar.

FERNANDES, irmão auxiliar, Domingos – português, de Borba, nasceu em 1551 e entrou para a Companhia em 1567, em Évora. Foi trespassado com uma lança e ainda vivo lançado ao mar.

FERNANDES, irmão estudante, João – português, de Braga, nasceu em 1547 e entrou para a Companhia em 1569, em Coimbra. Foi lançado vivo ao mar.

FERNANDES, irmão estudante, João – português, de Lisboa, nasceu em 1551 e entrou para a Companhia em 1568, em Coimbra. Foi lançado vivo ao mar.

FERNANDES, irmão auxiliar, Manuel – português, de Celorico da Beira. Foi lançado vivo ao mar.

FONTOURA, irmão auxiliar, Pedro de – português, de Chaves. Estando em oração, recebeu uma cutilada no rosto que lhe cortou a língua, sendo depois lançado ao mar.

GONÇALVES, irmão estudante, André – português, de Viana d o Alentejo, tinha estudado na universidade de Évora. Foi lançado ao mar depois de apunhalado.

GODOY, irmão estudante, Francisco Pérez – espanhol. De Torrijos (Toledo), nasceu em 1540 e entrou para a Companhia em 1569. Era parente de Santa Teresa de Jesus (de Ávila). Bacharel em cânones pela Universidade de Salamanca, sabia música e tocava vários instrumentos. Apunhalado, foi lançado ainda vivo ao mar.

HENRIQUES, irmão estudante, Gonçalo – português, do Porto, era diácono. Foi lançado ao mar.

LOPES, irmão estudante, Simão – português, de Ourém, entrou para a Companhia durante a viagem. Foi lançado vivo ao mar.

MAGALHÃES, irmão estudante, Francisco de – português, de Alcácer do Sal, nasceu em 1549 e entrou para a Companhia em 1568, em Évora. Tinha aptidão para bom administrador e excelente voz de tenor. Foi lançado vivo ao mar.

MAIORGA, irmão auxiliar, João – espanhol, de S. Jean Pied de Port (na época do domínio de Navarra), nasceu em 1533 e entrou para a Companhia em 1568. Era pintor de ofício. Foi lançado vivo ao mar.

MARTIM, irmão estudante, João de São – espanhol, de Yuncos (Toledo), nasceu em 1550 e entrou para a Companhia em 1570, em Évora, quando estudava na Universidade de Alcalá. Foi ferido e lançado vivo ao mar.

MENDES, irmão estudante, Álvaro – português, de Elvas, era excelente cantor. Foi lançado vivo ao mar.

NUNES, irmão estudante, Pedro – português, de Fronteira. Foi lançado vivo ao mar.

PACHECO, irmão estudante, Manuel – português, de Ceuta. Foi lançado vivo ao mar.

PIRES (Mimoso), irmão estudante, Diogo – português, de Nisa, frequentou o curso de filosofia na Universidade de Évora. Foi trespassado com uma lança e o seu corpo deitado ao mar.

RIBEIRO, irmão auxiliar, Brás – português, de Braga, nasceu em 1546 e entrou para a Companhia em 1569, no Porto. Estando recolhido a rezar, foi morto com uma cutilada na cabeça e o seu corpo lançado ao mar.

RODRIGUES, irmão estudante, Luís – português, de Évora, nasceu em 1554 e entrou para a Companhia em 1570, em Évora. Foi lançado vivo ao mar.

RODRIGUES, irmão estudante, Manuel – português, de Alcochete. Foi lançado vivo ao mar.

SANCHES, irmão estudante, Fernando – espanhol, de Castela-a-Velha, foi estudante em Salamanca. Foi lançado vivo ao mar.

SOARES, irmão estudante, António – português, de Trancoso, entrou para a Companhia em 1565, em Évora, onde passou todo o noviciado. Serviu como cozinheiro e enfermeiro e assumiu na nau o ofício de soto-ministro. Foi apunhalado e lançado vivo ao mar.

VAZ, irmão auxiliar, Amaro – português, de Benfazer (Marco de Canavezes), nasceu em 1553 e entrou para a Companhia em 1569, no Porto. Foi lançado vivo ao mar, depois do seu corpo ser atravessado com punhaladas.

ZAFRA, irmão auxiliar, João de – espanhol, de Jérez (Badajoz), entrou para a Companhia em 1570, em Évora. Foi lançado vivo ao mar.

ZUDAIRE, irmão auxiliar, Estêvão – espanhol, de Zudaire (Navarra). Tinha o ofício de bordador. Foi lançado vivo ao mar.

Os 40 missionários ficaram conhecidos como Mártires do Brasil. O Papa Pio IX proclamou-os beatos a 11 de maio de 1854, e São João Paulo II recordou-os solenemente no Jubileu do Ano 2000, confirmando o seu culto.

A memória destes jovens, que partiram com ardor apostólico e encontraram a morte no mar, é símbolo da coragem e da fé que animaram a primeira geração missionária portuguesa. Entre eles, o humilde cardador da Covilhã, Francisco Álvares, eleva o nome da sua terra como exemplo de fidelidade, serviço e entrega total a Deus.

Fontes: Os 40 Mártires o Brasil, de Eduardo Kol de Carvalho, Wikipédia, Biblioteca- Arquivo Municipal da Covilhã.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “O Olhanense”, de 01-11-2025)

22 de outubro de 2025

O VISIONÁRIO

 

Um visionário é alguém capaz de ver além do momento presente, antecipando necessidades que muitos sequer conseguem vislumbrar. Acima de tudo, são pessoas ambiciosas, movidas pela convicção de que podem transformar o mundo.

Steven Paul Jobs (Steve Jobs), Mark Elliot Zuckerberg (Mark Zuckerberg), Thomas John Watson (Thomas Watson), Henry Ford, entre outros, foram empreendedores que demostraram essa visão ao longo das suas trajetórias profissionais.

Um exemplo claro da falta de visão pode ser observado diariamente nas transmissões televisivas das famosas discussões parlamentares. Isso não é visão – é perda e tempo. O mais importante parece ser o politicamente correto, agradar a todos, evitar a disrupção. Em suma, ser apenas mais um entre muitos.

Ser visionário implica saber e querer agir.

Steve Jobs não foi, nem será, o único visionário. Mas foi corajoso o suficiente para enfrentar negações, contradições e descrenças ao longo da sua vida. Este inventor, empresário e magnata norte-americano destacou-se como cofundador, presidente e diretor executivo da Apple Inc., revolucionando seis indústrias: computadores pessoais, filmes de animação, música, telefones, tablets e publicações digitais. Faleceu em 5 de outubro de 2011.

ERNESTO CRUZ –

Um Visionário da Indústria, Um Industrial do seu Tempo.

Sobre esta figura marcante da Covilhã, escrevi um pequeno livro biográfico a pedido da Câmara Municipal da Covilhã, em 2010 que depressa se esgotou.

Deste valoroso industrial laneiro covilhanense, emergem episódios fascinantes da sua vida multifacetada. Destaco aqui um momento que revela o seu humor e destemor:

Durante uma viagem de negócios de avião, acompanhado pelo industrial António Pereira Nina, ocorreu o seguinte episódio:

“Numa bela noite, em viagem de Londres para Lisboa, na companhia de dois bons amigos – Ernesto Cruz e José Cruz Alves da Silva – num avião a jato, aconteceu algo que ainda hoje guardo na memória. Num dado momento, eu, que viajava junto à janela, notei que dos escapes dos reatores saíam enormes línguas de fogo, aparentemente além do normal. Preocupado, dirigi-me ao amigo Ernesto Cruz, que ia ao meu lado, e disse-lhe:

 – Ó Ernesto, parece-me que estamos correndo risco; o avião dá ideia de que vai pegar fogo! Ao que ele, com aquela filosofia que lhe era peculiar, respondeu:

 O que é que você tem com isso? O avião é seu?

Quem teve o privilégio de conviver com tão saudoso amigo recorda bem, através deste episódio, o porte altivo que ele possuía – aqui bem demonstrado.”

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “O Olhanense”, de 15-10-2025)


Capelão Militar ALBERTO MATOS ALMEIDA *


 

Chegou a vez de incluir neste espaço um nome sobejamente conhecido dos covilhanenses – e não só –, trazendo para a ribalta o amigo Padre Alberto, figura cativante que, com frequência, reúne em tertúlias os amigos e antigos combatentes.

Alberto Matos de Almeida nasceu em 10 de novembro de 1940, em Famalicão da Serra, em plena Segunda Guerra Mundial, marcada pelas suas duras consequências humanas, sociais e políticas. Cresceu num ambiente rural montanhoso: o pai era alfaiate e a mãe dividia o tempo entre a agricultura familiar e as tarefas domésticas. Eram tempos difíceis para a maioria das famílias.

Para prosseguir os estudos, Alberto tinha como única alternativa ingressar no Seminário do Fundão. As mensalidades, bastante onerosas, foram suportadas com a ajuda monetária de um tio. Mais tarde, concluiu o Curso de Teologia no Seminário Maior da Guarda e foi ordenado sacerdote a 28 de julho de 1963, na Sé da Guarda, pelo Bispo D. Policarpo da Costa Vaz.

Foi nomeado pároco de Aldeia do Bispo e Vale da Serra, no concelho da Guarda, cargo que exerceu durante dois anos. Paralelamente, foi revisor de provas do jornal A Guarda e de outras publicações durante sete anos, além de integrar, com o Cónego Norberto, a equipa na Câmara Eclesiástica Egitaniense.

Mais tarde seguiu para a Academia Militar, onde frequentou um curso preparatório para Capelães Militares. Na Guiné, durante a guerra subversiva, chegaram a exercer essa missão cento e dois sacerdotes no Exército, sete na Força Aérea e quatro na Marinha.

O Padre Alberto iniciou a sua missão militar prestando serviço de capelania no Regimento de Infantaria nº. 15, em Tomar. Posteriormente, foi mobilizado para integrar o Batalhão de Cavalaria nº. 2992. Embarcou a 3 de julho de 1970 no paquete Uíge, que, apesar de ter capacidade para 750 pessoas, transportava 1.200 militares em condições precárias. Como recorda: “Éramos carne para canhão”.

Destacado para Piche com o seu Batalhão, o Capelão Militar, Alferes Miliciano Alberto Matos Almeida acompanhou as companhias distribuídas por diversas localidades – Canajá, Canquelifá, Bojocunda, Pirada, entre outras –, numa vasta região de etnia fula, onde a guerra de guerrilha estava particularmente acesa.

Durante dois anos viveu o drama de perder cerca de cinquenta militares em combate, números que espelhavam bem a dureza do conflito. Sobre esta experiência, o Padre Alberto recorda:

 “Não é fácil, em ambiente de guerra, desenvolver uma ação pastoral normal. Queriam dar-me uma arma, mas recusei, porque a minha verdadeira arma era a minha presença com uma viola. Muitas vezes percorri tabancas, abrigos, aquartelamentos e o mato para levar mensagens de fé, esperança, um pouco de alegria e de conforto. Foi uma experiência dolorosa, mas também enriquecedora, pois conheci dificuldades impensáveis, alimentei-me com rações de combate e comi muito arroz com estilhaços de frango. Acima de tudo, convivi com militares, muitos deles casados e pais de família, que viam em mim um suporte psicológico e espiritual.  Estive sempre próximo das suas dificuldades, que também eram as minhas, embora tivesse de as guardar em silêncio.”

A 20 de junho de 1972 regressou à Metrópole, concluída a Comissão Militar, recusando o convite para continuar no serviço de Capelão Militar. Assumiu, então, a paróquia do Canhoso (Covilhã).

Atualmente é Pároco no Teixoso, Sarzedo, Orjais e Verdelhos, onde exerce a sua missão pastoral desde 1995. As comunidades reconhecem-lhe o empenho e o trabalho desenvolvido ao longo dos anos tendo sido homenageado pela União de Freguesias da Covilhã e Canhoso, e, por deliberação de 5 de julho de 2013 a Câmara Municipal da Covilhã atribuiu-lhe a Medalha de Mérito Municipal – Categoria Prata.

João de Jesus Nunes

*A biografia deste antigo combatente deve-se ao contributo do amigo António Alves Fernandes, a quem o autor agradece.

(In “O Combatente da Estrela”, nº. 140 – OUT/2025)

 

DO ESTADO NOVO, PASSANDO PELO MOVIMENTO NACIONAL FEMININO, AO ESTADO DEMOCRÁTICO

 

A história política de Portugal na segunda metade do século XX é marcada por uma profunda rutura estrutural: a passagem de um regime autoritário, de matriz corporativista e nacionalista, para um sistema democrático, pluralista e descentralizado. A análise deste percurso, que atravessa o Estado Novo (1933-1974), a criação e atuação do Movimento Nacional Feminino (1961-1974) e a subsequente construção do Estado Democrático (a partir de 1974), revela não apenas mudanças políticas, mas também transformações sociais e culturas profundas, muitas das quais vividas intensamente pelas Forças Armadas e pelos combatentes portugueses.

O Estado Novo, uma ditadura de longa duração, foi instituído formalmente pela Constituição de 1933, consolidando o regime autoritário construído por António de Oliveira Salazar a partir da Ditadura Militar de 1926. Estruturado sob os princípios do corporativismo, do nacionalismo católico e do antiliberalismo, o regime reforçou o poder executivo, restringiu os partidos políticos (mantendo apenas a União Nacional como partido único) e limitou direitos fundamentais através de mecanismos como a censura prévia e a atuação da Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE).

No plano económico, a política do Estado Novo privilegiou a autarcia, a disciplina orçamental e a estabilidade monetária, sacrificando o desenvolvimento industrial e social. O regime também reforçou uma visão imperial, consagrada no Ato Colonial de 1930 e reafirmada na Constituição de 1933, que considerava as colónias ultramarinas parte integrante da Nação. Essa visão justificou a manutenção do império português, mesmo perante as pressões internacionais do pós-Segunda Guerra Mundial, e esteve na origem da Guerra Colonial.

A Guerra Colonial (1961 – 1974) marcou uma geração inteira de portugueses. Iniciada com os ataques em Angola (4 de fevereiro de 1961), rapidamente se estendeu a Guiné-Bissau (1963) e Moçambique (1964), envolvendo mais de 800 mil militares ao longo de 13 anos de conflito. Este esforço de guerra prolongado desgastou profundamente o regime, que, mesmo após a morte de Salazar (1970) e a ascensão de Marcelo Caetano, não conseguiu encontrar uma solução política para o impasse colonial.

O Movimento Nacional Feminino (MNF), fundado em 28 de abril de 1961 por 25 mulheres sob a liderança de Cecília Supico Pinto, surgiu como uma organização de apoio logístico e moral às Forças Armadas. Embora intimamente ligado ao regime salazarista, o MNF constituiu uma rede voluntária de milhares de mulheres que, a partir de Portugal continental, dinamizavam campanhas de angariação de bens, organizavam “aerogramas” e pacotes destinados aos combatentes e visitavam teatros de operações no Ultramar. Foi uma resposta patriótica aos sucessivos eventos ocorridos contra o Estado Novo nesse ano, como o desvio do navio Santa Maria pelo capitão Henrique Galvão (1895 – 1970), em 22 de janeiro, e os primeiros ataques em Luanda (4 de fevereiro) e no norte de Angola (15 de março), que desencadearam a Guerra do Ultramar. Promoveram também a iniciativa das Madrinhas de Guerra.

A atuação do MNF, ainda que integrada na propaganda oficial, conferiu às mulheres uma visibilidade pública inédita no contexto conservador do Estado Novo, reforçando o seu papel social sob o ideal de “mãe-pátria”. Este movimento foi, simultaneamente, uma expressão de nacionalismo do regime e um fenómeno social de mobilização civil em tempo de guerra, contribuindo para mitigar o isolamento sentido por muitos militares destacados em África.

O prolongamento da guerra, o isolamento internacional de Portugal e a insatisfação crescente entre os militares levaram ao 25 de Abril de 1974, a chamada Revolução dos Cravos, protagonizada pelo Movimento das Forças Armadas (MFA). A revolução derrubou pacificamente o regime e iniciou o Processo Revolucionário em Curso (PREC), um período (1974 – 1976) caraterizado por intensa mobilização social, instabilidade política e redefinição do papel das Forças Armadas.

A aprovação da Constituição de 1976 consolidou os alicerces do Estado Democrático, incluindo a separação de poderes, o sufrágio universal, os direitos fundamentais e a descentralização política. A nova ordem constitucional reconheceu o fim do império colonial, afirmando a autodeterminação dos povos africanos e encerrando o ciclo histórico do colonialismo português.

O percurso histórico entre 1933 e 1976 reflete tensões entre autoritarismo, colonialismo, modernização e democratização. Para os antigos combatentes, este período permanece particularmente significativo: muitos viveram o contraste entre a mobilização em nome do império e a transição para um país democrático e europeu.

Recordar o Estado Novo, o Movimento Nacional Feminino e a construção do Estado Democrático não é apenas um exercício académico, mas também um ato de justiça histórica. A memória destes acontecimentos permite compreender melhor os sacrifícios e a coragem das gerações que serviram Portugal em tempos de mudança, preservando o seu legado para as novas gerações.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “O Combatente da Estrela”, nº. 140 – OUT/2025)

 


3 de outubro de 2025

ENTRE O “LIXO” E O PRESTÍGIO: A PARADOXAL VIAGEM DE PORTUGAL NOS RATINGS


 

Somos um país de brandos costumes. Entusiasmamo-nos com a efusão daqueles dias que não afetam diretamente as nossas vidas. Apesar do desalento e da desilusão provocados pela terrível devastação dos fogos, os pesadelos acabam por passar e os sonhos voltam. Mas nem todos querem ou podem renascer das cinzas.

Já não são só as alterações climáticas a causarem preocupação acrescida. É o homem que não se preocupa – não apenas consigo, mas também com os vindouros – mesmo estando à beira da catástrofe.

Em 2011, Portugal foi sacudido por uma expressão que feriu o nosso orgulho coletivo: as agências de rating internacionais classificaram a dívida soberana do país como “lixo”. Também eu manifestei a minha indignação, na comunicação social, quando a Moody’s colocou Portugal naquela situação. Reporto-me a um artigo de 13-07-2011, publicado no Notícias da Covilhã, onde escrevi:

“E, nesta lixadela, vale mais mandá-los às malvas, ou mais propriamente, para o rating que os parta!”.

E mais adiante:

 “É em plena época estival que vem uma agência de rating do Pacífico, e também do Atlântico, deixar-nos lixados com a sua ‘oferta’ de nível de lixo, pelo que apetece dizer: Que se lixem! Ou mesmo, ide-vos lixar!”

De repente, a palavra usada no quotidiano para designar o que não tem valor passou a definir a confiança dos mercados em nós. Era o tempo da intervenção externa, da troika, da austeridade dura, da emigração forçada de milhares de jovens qualificados. O país sentia-se diminuído, olhado de fora como um território pouco credível para investir.

Paradoxalmente, esse mesmo Portugal é hoje elogiado pelas mesmas agências, que subiram a classificação da nossa dívida para patamares de confiança. A economia apresenta indicadores de robustez, o défice orçamental tornou-se excedente em certos momentos, a dívida pública recua timidamente em percentagem do PIB e as exportações, o turismo e setores inovadores ganham novo fôlego. O país que era “lixo” é agora considerado seguro, estável, recomendável.

Mas a pergunta que se impõe é inevitável: mudou assim tanto Portugal?

Se olharmos para as ruas, percebemos que a vida das famílias continua marcada por salários baixos, habitação proibitiva para jovens e classes médias, serviços públicos sob pressão e uma perceção generalizada de desigualdade. A macroeconomia sobe de patamar. Mas a microeconomia – a vida real de quem conta cada euro no final do mês – nem sempre acompanha.

Este paradoxo é revelador: os ratings medem a confiança dos mercados financeiros, não a felicidade das pessoas. O país pode estar melhor visto lá fora, sem que isso signifique que os cidadãos sintam esse progresso no bolso ou no dia a dia. Ainda assim, não devemos menosprezar a diferença: ter a confiança dos mercados significa juros mais baixos, dívida mais barata, mais margem para investir. É um círculo virtuoso que pode – se bem aproveitado – traduzir-se em benefícios concretos para a sociedade.

Em 2011, Portugal era o retrato da desconfiança; em 2025, é a imagem de uma recuperação reconhecida. Entre o “lixo” e o prestígio decorre a mesma realidade nacional: um povo resistente, capaz de se reinventar, mas que ainda espera que as estatísticas do crescimento se transformem em qualidade de vida efetiva.

Talvez este seja o verdadeiro desafio para o futuro: não apenas sermos classificados como recomendáveis nos mercados, mas sobretudo sermos reconhecidos como um país onde vale a pena viver, trabalhar e sonhar.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “O Olhanense”, de 01-10-2025)

2 de outubro de 2025

AUTÁRQUICAS EM MOVIMENTO: AMBIÇÕES, ESTRATÉGIAS E O PODER LOCAL


 

À medida que se aproximam as eleições autárquicas, o país enche-se de cartazes, slogans ambiciosos e promessas renovadas – muitas vezes, apenas recicladas. Multiplicam-se candidatos, todos convictos de possuir a chave para o desenvolvimento local.

Para uns, este é o momento maior da democracia de proximidade; para outros, com natural ceticismo, não passa de um desfile de rostos sorridentes e frases feitas, atrás dos quais se pode esconder o mesmo enredo de sempre – um palco de vaidades e estratégias pessoais, onde os eleitores acabam muitas vezes reduzidos a plateia, em vez de protagonistas.

Curioso é notar que alguns autarcas, impossibilitados de renovar o mandato nos seus concelhos, optam por se candidatar noutras paragens. A geografia política transforma-se, assim, num tabuleiro de xadrez em que o essencial é não perder o lugar de topo. Trocam-se freguesias por cidades, concelhos por vilas, mas permanece a ambição de se manter na ribalta – quase como quem muda de camisola para não sair do jogo.

Não falta legitimidade a quem deseja continuar a servir a causa pública. Contudo, esta “dança de cadeiras” levanta questões inevitáveis: trata-se de vocação ou de carreira? De serviço ou de poder? Em ano de eleições, o eleitorado, tantas vezes esquecido entre mandatos, volta a ser cortejado. Entre promessas e discursos inflamados, cabe a cada cidadão separar o trigo do joio, distinguindo quem de facto se compromete com a sua terra de quem apenas procura mais um degrau na escalada política.

Entre mandatos, o povo é frequentemente esquecido. Mas, quando chega setembro ou outubro, voltam todos a bater-lhe à porta – com um sorriso ensaiado e a mão estendida.

Por isso, é ao a cidadão – o único que detém, verdadeiramente, a chave da mudança – que cabe avaliar com rigor quem se apresenta. É preciso olhar para além dos cartazes, ouvir para lá das promessas e, sobretudo, perceber quem tem obra feita e quem vive apenas de ambição.

A democracia sustenta-se em escolhas conscientes e informadas. As autárquicas são um ato de confiança. Não nos deixemos enganar pela espuma dos dias nem pelo marketing político. No fim, a força da democracia não reside nas cadeiras que alguns disputam, mas na lucidez com que o povo escolhe quem nelas se senta.

Que estas eleições sirvam, acima de tudo, para reforçar a voz dos cidadãos – e não para alimentar vaidades ou perpetuar jogos de poder mais do que alimentar vaidades ou perpetuar jogos de poder. Porque  o verdadeiro protagonista deveria ser sempre o povo: aquele que, em silêncio, decide o rumo das suas terras e confia, a cada quatro anos, que os eleitos honrem o peso do voto que lhes foi dado.

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In Jornal “Cinco Quinas”, Sabugal, de outubro 2025)

18 de setembro de 2025

ELEIÇÕES AUTÁRQUICAS: A DANÇA DAS CADEIRAS POLÍTICAS

 

À medida que se aproximam as eleições autárquicas, o país veste-se de cartazes, slogans ambiciosos e promessas renovadas – muitas vezes, apenas recicladas. Multiplicam-se candidatos, cada um mais convicto do que o outro de possuir a chave para o desenvolvimento local.

Há quem veja este momento como a festa da democracia local; outros, com um certo ceticismo, assistem ao desfile de rostos sorridentes e frases feitas, perguntando-se se, por trás de tanta cor e otimismo, não se esconde o mesmo enredo de sempre, num palco de vaidades e estratégias pessoais, onde os eleitores se veem mais como plateia do que como protagonistas.

Curioso é notar que, entre tantos candidatos, alguns, já sem possibilidade de renovar o mandato no seu concelho, decidem aventurar-se em novas praças. A geografia política parece, assim, um tabuleiro de xadrez onde o importante é não perder o lugar de topo. Trocam-se freguesias por cidades, concelhos por vilas, mas permanece a ambição de se manter na ribalta.

Trocam-se concelhos como quem troca de camisola – mas como o mesmo objetivo: não perder o poder

Não que falte legitimidade a quem deseja continuar a servir a causa pública. Porém, esta “dança de cadeiras” levanta questões inevitáveis: trata-se de vocação ou de carreira? De serviço ou de poder? Em ano de eleições, o eleitorado, tantas vezes esquecido entre mandatos, volta a ser cortejado. E, entre promessas e discursos inflamados, cabe a cada cidadão separar o trigo do joio, distinguir quem de facto se compromete com a terra de quem apenas procura mais um degrau na escalada política.

Curioso é o número de candidatos dispostos a tudo para manter o “lugar de topo”. Até que ponto esta mobilidade reflete vontade de servir, ou apenas medo de desaparecer dos holofotes?

Entre mandatos, o eleitorado parece esquecido. Mas, quando chega setembro ou outubro, todos voltam a bater à porta do povo, com um sorriso treinado e uma mão estendida.

Cabe, por isso, a cada cidadão – o único que tem, de facto, a chave da mudança – avaliar com rigor quem se apresenta. Olhar para além dos cartazes, ouvir para lá das promessas e, sobretudo, perceber quem tem trabalho feito e quem vive apenas de ambição.

A democracia vive da escolha consciente e informada. As autárquicas são um ato de confiança. Que não nos deixemos levar pela espuma dos dias nem pelo marketing político. Porque, no final, a verdadeira força da democracia não está nas cadeiras que alguns disputam, mas na lucidez com que o povo escolhe quem se senta nelas.

Que estas eleições autárquicas sirvam, então, para reforçar a voz dos cidadãos, mais do que alimentar vaidades ou perpetuar jogos de poder. Porque, no fim, o verdadeiro protagonista deveria ser sempre o povo – aquele que, em silêncio, decide o rumo das suas terras e confia, a cada quatro anos, que os eleitos honrem o peso do voto que lhes foi dado.

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “O Olhanense”, de 15-09-2025)

17 de setembro de 2025

A POLÍTICA EM ROTAÇÃO: REFLEXÕES SOBRE AS ELEIÇÕES AUTÁRQUICAS


 

À medida que se aproximam as eleições autárquicas, o país enche-se de cartazes, slogans ambiciosos e promessas renovadas – muitas vezes, apenas recicladas. Multiplicam-se candidatos, cada um mais convicto do que o outro de possuir a chave para o desenvolvimento local.

Para uns, este é o momento alto da democracia de proximidade; para outros, com um certo ceticismo, não passa de um desfile de rostos sorridentes e frases feitas. Perguntam-se se, por trás de tanta cor e otimismo, não estará o mesmo enredo de sempre, num palco de vaidades e estratégias pessoais, onde os eleitores são tratados mais como plateia do que como protagonistas.

É curioso notar que, entre tantos candidatos, alguns impossibilitados de renovar o mandato no seu concelho, decidem aventurar-se em novas praças. A geografia política transforma-se, assim, num tabuleiro de xadrez onde o essencial parece ser não perder o lugar de destaque. Trocam-se freguesias por cidades, concelhos por vilas, mas a ambição mantém-se: continuar na ribalta.

Trocam-se concelhos como quem troca de camisola – sempre com o mesmo objetivo: não largar o poder.

Nada há de ilegítimo em quem deseja continuar a servir a causa pública. Contudo, esta “dança de cadeiras” levanta inevitáveis questões: trata-se de vocação ou de carreira? De serviço ou de poder? Em ano de eleições, o eleitorado, tantas vezes esquecido entre mandatos, volta a ser cortejado. Entre promessas e discursos inflamados, cabe a cada cidadão separar o trigo do joio, distinguindo quem de facto se compromete com a terra de quem apenas procura mais um degrau na escalada política.

A quantidade de candidatos dispostos a tudo para manter o “lugar de topo” é reveladora. Até que ponto esta mobilidade traduz genuína vontade de servir ou apenas medo de desaparecer dos holofotes?

Durante os mandatos, o eleitorado parece cair no esquecimento. Mas quando chega setembro ou outubro, todos regressam às ruas, de sorriso treinado e mão estendida, à procura de votos.

Por isso, cabe a cada cidadão – o único que detém, de facto, a chave da mudança – avaliar com rigor quem se apresenta. Olhar para além dos cartazes, ouvir para lá das promessas e, sobretudo, perceber quem tem trabalho feito e quem vive apenas de ambições pessoais.

A democracia vive de escolhas conscientes e informadas. As autárquicas são um ato de confiança. Não nos deixemos levar pela espuma dos dias nem pelo marketing político. No final, a verdadeira força da democracia não está nas cadeiras disputadas, mas na lucidez com que o povo decide quem se senta nelas.

Que estas eleições autárquicas sirvam, assim, para reforçar a voz dos cidadãos, em vez de alimentar vaidades ou perpetuar jogos de poder. Porque, no fim, o verdadeiro protagonista deveria ser sempre o povo – aquele que, em silêncio, traça o destino das suas terras e confia, a cada quatro anos, que os eleitos honrem o peso do voto que lhes foi dado.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “Jornal Fórum Covilhã”, de 17-09-2025)

 

 

 

 

11 de setembro de 2025

DOLOROSA MISSÃO NUM PAÍS A ARDER



 

Mais uma vez, a Covilhã veste-se de luto. Mais uma vez, um bombeiro não regressou ao quartel, à família, aos amigos. A tragédia aconteceu a caminho de um incêndio, tal como em cinco anteriores casos que narrei no meu livro Vida e Obra dos Bombeiros Voluntários da Covilhã, publicado em 2004.

Há 12 anos senti a mesma dor ao escrever um artigo sob o falecimento de outro valoroso combatente pela paz, apanhado pelas chamas, que intitulei Mártires pela Paz, recordando então os que já tinham tombado.

Daqui se conclui que o perigo não está apenas nas chamas que consomem florestas e casas, mas também em cada quilómetro percorrido, em cada estrada, em cada instante em que se parte de farda vestida, com a missão de proteger e salvar.

Cada vez que a sirene ecoa na cidade, sabemos que há vidas em risco, que há património e memórias ameaçados. Mas, para os nossos bombeiros, cada toque da sirene é também um salto para o desconhecido. Partem sempre com coragem, conscientes de que podem não regressar. E quando não regressam, a dor espalha-se como um fogo que nenhuma água consegue apagar.

Não é a primeira vez que a Covilhã chora os seus soldados da paz. Já outros tombaram no combate aos incêndios, já outros se ofereceram em sacrifício, sem nunca recuar perante o dever.

Quando o fumo se levanta ou o socorro é solicitado, nenhum homem ou mulher das Corporações de Bombeiros deixa de se aprontar para ajudar o seu semelhante. E fá-lo sem vaidade, sem esperar recompensa, mas apenas com o sentido maior da expressão “amor ao próximo”.

Assim, muitos heróis integram já a longa história dos Bombeiros Voluntários da Covilhã (BVC), instituição gloriosa que completou recentemente 150 anos de existência, marcada por inúmeras ações de valentia no salvamento de pessoas e bens.

Foram já muitos os covilhanenses – de raiz ou de coração, da cidade ou das aldeias – que viram a sua vida ou património salvos pelos bombeiros. Outros, infelizmente, não puderam ser poupados à força devastadora dos incêndios que, ano após ano, assolam o país e deixam um rasto de prejuízos, alguns irreparáveis.

Com a morte trágica de mais um valoroso elemento dos nossos BVC, ocorrida no domingo, 17 de agosto, Daniel Bernardo Agrelo, de 44 anos, casado e pai de um filho menor de 14, totalizam-se já oito mártires ao serviço desta associação que ostenta, com honra, as insígnias do Grau de Cavaleiro da Ordem Militar da Torre e Espada, Valor, Lealdade e Mérito, atribuídas pelo Governo em 03-02-1928.

A primeira vítima – Abílio Adelino Sousa, fundador dos BVC – perdeu a vida num fatídico domingo, 18 de fevereiro de 1883, durante um exercício.

O segundo mártir – Sebastião dos Santos Júlio, altamente condecorado por atos de bravura – faleceu num acidente de viatura, numa 5ª feira a 10 de setembro de 1931, quando se deslocava para um incêndio. Tinha já salvo oito pessoas no incêndio da Mineira, na noite de 14-06-1907, ato pelo qual foi distinguido com a Medalha de Prata de D. Maria II. Em janeiro de 1932, o Governo da República concedeu-lhe, a título póstumo, o Grau de Cavaleiro da Ordem Militar da Torre e Espada.

A terceira vítima – Mário Dias Tarouca – morreu na madrugada de 12 de abril de 1936 (domingo), cerca das 2 horas da manhã, em consequência de um desastre durante o incêndio da fábrica Manuel Lino Roseta.

As quarta, quinta e sexta vítimas mortais – António Miguel Vaz Marques, Ricardo Bruno de Jesus Cardona e Fernando Manuel Sousa Xistra, sucumbiram na sexta-feira, 2 de agosto de 1996, no trágico acidente aéreo do helicóptero que combatia incêndios florestais na Covilhã.

No feriado de 15 de agosto de 2013 (quinta-feira), a Covilhã perdeu mais um bombeiro, Pedro Miguel de Jesus Rodrigues, apanhado pelas chamas no sul do concelho, sem conseguir fugir.

Hoje, com dor renovada, vejo-me obrigado a acrescentar mais um nome a essa galeria de heróis.

O país continua a arder, ano após ano. Continuamos a assistir ao flagelo que destrói não apenas árvores, mas aldeias, lares, sonhos e, tantas vezes, vidas humanas. Até quando aceitaremos que este sofrimento faça parte do calendário de verão? Até quando permitiremos a floresta desordenada, a prevenção esquecida, e os nossos bombeiros lançados para a frente da batalha sem todas as condições que merecem?

A morte de um bombeiro não pode ser apenas notícia de um dia. Não pode ser apenas uma lágrima que cai e logo se seca. Honrar os nossos bombeiros é muito mais: é preservar a memória dos que tombaram, é cuidar dos que continuam vivos e ativos, é trabalhar para que estas tragédias sejam cada vez menos frequentes.

Hoje, mais um Mártir da Esperança se junta à história dos Bombeiros da Covilhã. Partiu demasiado cedo, mas deixou-nos uma herança de coragem e de serviço. Que o seu nome não se apague. Que o seu exemplo não se esqueça.

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

 

(In “Jornal Fórum Covilhã”, de 09-09-2025)

5 de setembro de 2025

Volta a Portugal: Memórias e Emoções de Ontem e de Hoje

 

No final de uma época futebolística que deu brado e provocou acesas discussões entre adeptos de diferentes clubes, paradoxalmente inicia-se uma nova fase desportiva, com a entrada para um novo campeonato – a época 2025/2026 – carregada de expectativas e emoções.

Com o calor de verão, regressa o ciclismo vibrante: a Volta a Portugal em Bicicleta, ou simplesmente “a Volta”. Está já a caminhar para o centenário, pois a 1ª edição realizou-se  em 1927.

A comunicação social esteve na origem da sua organização, numa parceria entre os jornais Diário de Notícias e Os Sports, inspirando-se no Tour de France, criado pelo jornal L’ Auto em 1903.

A Volta surgiu depois do Giro d’ Itália, organizado pela La Gazzetta dello Sport em 1909, e antes da Vuelta a España, criada pelo jornal Informaciones em 1935. Tanto a Volta a Portugal como o Tour se distinguem de outras provas pela forma como, nos seus primeiros traçados, seguiram de perto a fronteira territorial dos respetivos países, acompanhando os seus contornos durante várias décadas.

A primeira edição da Volta iniciou-se a 26 de abril de 1927 e percorreu o país durante 20 dias, num percurso de 2000 km, distribuídos por 18 etapas. Terminou com uma receção apoteótica em Lisboa. O vencedor foi António Augusto de Carvalho, do Carcavelos, que inaugurou a galeria de campeões da chamada “Prova Rainha” do ciclismo português.

Na adolescência como tantos portugueses, ganhei entusiasmo por esta competição. Entre as figuras marcantes da época estavam Alves Barbosa, do Sangalhos, e Ribeiro da Silva, do Académico do Porto – este último falecido tragicamente num acidente de motorizada em 9 de abril de 1958.

Nos anos 60, o F. C. Porto destacou-se com ciclistas como Carlos Carvalho, Sousa Cardoso, Mário Silva e José Pacheco. Mas em 1963 o título foi para João Roque, do Sporting CP, e, em 1965, para Peixoto Alves, do Benfica.

Em 1967, pela primeira vez, a Volta foi conquistada por um estrangeiro: Antoine Houbrechts, da Flandria.  

Na década de 70 surgiu um nome incontornável do ciclismo português: Joaquim Agostinho, do Sporting CP, vencedor das edições de 1970, 1971 e 1972. Outros corredores de relevo seguiram-se, como Fernando Mendes e Firmino Bernardino, do Benfica.

A partir dos anos 80, surgiram novas figuras entre as quais Marco Chagas, que venceu em 1982, 1983, 1985 e 1986, representando o F. C. Porto e, mais tarde, o Sporting C. P.

Houve também nomes que marcaram várias edições, mas nunca conseguiram vencer a geral, como Jorge Corvo, do Ginásio de Tavira, e, já no século XXI, Cândido Barbosa, da Liberty Seguros.

Na minha memória, permanece viva a edição de 1962. A 12 de julho, um domingo, eu, o meu irmão e alguns amigos da Covilhã partimos para as Penhas da Saúde, sem autorização dos pais, para assistir ao final da etapa. Seguindo atalhos pela serra, encontrámos um ambiente vibrante: público entusiasta, caravanas promocionais, bonés, brindes e a expectativa pela chegada dos heróis da estrada.

Nesse dia, o grande protagonista foi João Centeio, do Águias de Alpiarça. Na 12ª etapa, de 175 Km entre Portalegre e Penhas da Saúde, chegou com larga vantagem – cerca de 30 minutos sobre o segundo classificado, segundo o Diário de Notícias de 11 de agosto de 2005. “Quando lá chegou, atirou-se para a piscina”.  Segundo testemunhos, arrancou na “Varanda dos Carqueijais” – cerca de cinco quilómetros após o início da subida, onde a inclinação chega a 13%   – e deixou todos para trás. Terminou com 11 minutos de vantagem sobre o segundo. Apesar da façanha, Centeio nunca venceu uma Volta: em 1962 terminou apenas em 31º, devido a várias quedas. Este carismático ciclista já faleceu. * Mas não desapareceu do imaginário das gentes da serra.

O vencedor da 25ª Volta, em 1962, foi José Pacheco (F. C. Porto), seguido de Peixoto Alves (Benfica) e Jorge Corvo (Ginásio de Tavira). O Prémio da Montanha foi para Mário Silva (F. C. Porto).

Infelizmente, nesse mesmo dia, no regresso à Covilhã, um jovem covilhanense, José Filipe Carriço de Sousa, foi atropelado por um automóvel, falecendo no local.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

*Informação telefónica obtida em 09/08/2025, junto do Clube Desportivo Águias de Alpiarça, por D. Jessica (Secretaria).

(In “O Olhanense”, de 01-09-2025)


4 de setembro de 2025

UM ARTIGO QUE NÃO GOSTARIA DE ESCREVER

 

Mais uma vez, a Covilhã veste-se de luto. Mais uma vez, um bombeiro não regressou ao quartel, à família, aos amigos. A tragédia aconteceu a caminho de um incêndio, tal como em cinco anteriores casos que narrei no meu livro Vida e Obra dos Bombeiros Voluntários da Covilhã.

Daqui se conclui que o perigo não está apenas nas chamas que consomem florestas e casas, mas também em cada quilómetro percorrido, em cada estrada, em cada instante em que se parte de farda vestida, com a missão de proteger e salvar.

Cada vez que a sirene ecoa na cidade, sabemos que há vidas em risco, que há património e memórias ameaçados. Mas, para os nossos bombeiros, cada toque da sirene é também um salto para o desconhecido. Partem sempre com coragem, conscientes de que podem não regressar. E quando não regressam, a dor espalha-se como um fogo que nenhuma água consegue apagar.

Muitos heróis integram já a longa história dos Bombeiros Voluntários da Covilhã (BVC), instituição gloriosa que completou recentemente 150 anos de existência, marcada por inúmeras ações de valentia no salvamento de pessoas e bens.

Foram já muitos os covilhanenses – de raiz ou de coração, da cidade ou das aldeias – que viram a sua vida ou património salvos pelos bombeiros. Outros, infelizmente, não puderam ser poupados à força devastadora dos incêndios que, ano após ano, assolam o país e deixam um rasto de prejuízos, alguns irreparáveis.

Com a morte trágica de mais um valoroso elemento dos nossos BVC, ocorrida no domingo, 17 de agosto, Daniel Bernardo Agrelo, de 44 anos, casado e pai de um filho menor de 14, totalizam-se já oito mártires ao serviço desta associação.

A primeira vítima – Abílio Adelino Sousa, fundador dos BVC – perdeu a vida num fatídico domingo, 18 de fevereiro de 1883, durante um exercício.

O segundo mártir – Sebastião dos Santos Júlio, altamente condecorado por atos de bravura – faleceu num acidente de viatura, numa 5ª feira a 10 de setembro de 1931, quando se deslocava para um incêndio. Tinha já salvo oito pessoas no incêndio da Mineira, na noite de 14-06-1907.

A terceira vítima – Mário Dias Tarouca – morreu na madrugada de 12 de abril de 1936 (domingo), cerca das 2 horas da manhã, em consequência de um desastre durante o incêndio da fábrica Manuel Lino Roseta.

As quarta, quinta e sexta vítimas mortais – António Miguel Vaz Marques, Ricardo Bruno de Jesus Cardona e Fernando Manuel Sousa Xistra, sucumbiram na sexta-feira, 2 de agosto de 1996, no trágico acidente aéreo do helicóptero que combatia incêndios florestais na Covilhã.

No feriado de 15 de agosto de 2013 (quinta-feira), a Covilhã perdeu mais um bombeiro, Pedro Miguel de Jesus Rodrigues, apanhado pelas chamas no sul do concelho, sem conseguir fugir.

O país continua a arder, ano após ano. Continuamos a assistir ao flagelo que destrói não apenas árvores, mas aldeias, lares, sonhos e, tantas vezes, vidas humanas. Até quando aceitaremos que este sofrimento faça parte do calendário de verão? Até quando permitiremos a floresta desordenada, a prevenção esquecida, e os nossos bombeiros lançados para a frente da batalha sem todas as condições que merecem?

A morte de um bombeiro não pode ser apenas notícia de um dia. Não pode ser apenas uma lágrima que cai e logo se seca. Honrar os nossos bombeiros é muito mais: é preservar a memória dos que tombaram, é cuidar dos que continuam vivos e ativos, é trabalhar para que estas tragédias sejam cada vez menos frequentes.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “Jornal do Fundão”, de 04-09-2025)


21 de agosto de 2025

PEDRO HISPANO


 

Foi o Papa João XXI, o único Papa português eleito. Uns chamaram-lhe sábio, pelos seus vastos conhecimentos científicos; outros “mago” ou “bruxo”, exatamente pelos mesmos motivos. A verdade é que Pedro Julião, de nascimento – Pedro Hispano, por alusão ao seu país – marcou profundamente o século XIII, deixando sinais indeléveis na história da religião, da filosofia e da ciência.

Nascido em Lisboa entre 1205 e 1226 (sendo esta última mais consensual), faleceu em 1277. Foi pontífice entre 29 de setembro de 1276 – eleito 12 dias antes, em Viterbo – e 16 de maio de 1277, data da sua morte. Uma vida relativamente curta (cerca de 51 anos), e um pontificado ainda mais breve (oito meses), mas ambos plenos de testemunhos relevantes.

Filho do médico Julião Rebolho, estudou na Universidade de Paris, tornando-se também um médico de renome, ao ponto de ensinar Medicina na Universidade de Siena (Itália) e de ser nomeado “arquiatra” (médico pessoal) do Papa Gregório X. Neste domínio, escreveu duas obras fundamentais: De oculo, uma tradução de oftalmologia, e, sobretudo, o Thesaurus Pauperum, no qual indicava curas adequadas para vários tipos de doenças, especialmente destinadas àqueles sem meios para pagar cuidados médicos. Entre os seus escritos filosóficos, destaca-se a Sumulae logicales, onde expõe os princípios essenciais da lógica aristotélica.

No entanto, toda esta atividade científica incomodou os cronistas seus contemporâneos, que o retrataram como “mago”, ou “negromanticus”. Quando morreu tragicamente, vítima do desabamento de algumas salas do Palácio Papal, chegou-se mesmo a sugerir que o colapso teria sido causado por uma explosão resultante de misteriosas experiências que estaria a conduzir – uma acusação mais reveladora do preconceito do que da verdade. Os seus adversários simplesmente não concebiam que um bispo, e muito menos um Papa, pudesse dedicar-se com tanto empenho às ciências.

Abraçando a vida eclesiástica, tornou-se arcediago e depois decano da catedral de Lisboa (1261) e mais tarde, arcebispo de Braga (1273). Nesse mesmo ano, o Papa Gregório X nomeou-o cardeal-bispo de Frascati.

Os seus dotes de inteligência e bondade impressionaram o Colégio dos Cardeais (composto então por apenas dez membros), que, após a morte do Papa Adriano V, o elegeu como sucessor de São Pedro. Como Papa, João XXI distinguiu-se também como diplomata, destacando-se a reconciliação que conseguiu entre Afonso V de Castela e Filipe III de França, após tê-los ameaçado de excomunhão. Dante imortalizaria o seu nome no Canto XII da Divina Comédia, destinando-lhe a glória do Paraíso.

Como o DN noticiou, tratou-se de um ato de justiça, protagonizado pelo presidente da Câmara Municipal de Lisboa, João Soares (agnóstico assumido), que disponibilizou cerca de dois mil contos para a construção do novo sepulcro – feito em pedra de calcário lioz de Lisboa, com duas pilastras sobre as quais assenta a laje do túmulo original.

Em memória do único Papa que governou e morreu sem nunca se ausentar da cidade de Viterbo – onde fora eleito e que, durante quase um quarto de século, foi residência permanente dos pontífices e centro da cristandade – Lisboa e Viterbo ficaram mais “próximas”.

Muitos anos depois, os compatriotas de Pedro Hispano puderam, finalmente, recordá-lo num local digno do testemunho que nos deixou: o testemunho de um espírito eclético, de um homem que, antes de abraçar a vida eclesiástica, já se destacava na medicina do seu tempo.

Em 1855, o duque de Saldanha, então embaixador de Portugal junto da Santa Sé, mandou executar um novo sepulcro, mais digno, em mármore. Na lápide ficou gravado: “Aquele que foi o esplendor da nação portuguesa jaz fechado num túmulo augusto. A piedade de um Saldanha coloca-o num sepulcro mais digno, querendo honrar o pontificado e o compatriota”.

 Em cada lado da epígrafe foram colocadas duas figuras em mármore: à esquerda, representação da Lusitânia (Portugal); à direita, a Filosofia, na qual Pedro Hispano foi mestre para a posteridade, sobretudo pela obra Summulae logicales. O mausoléu viria a ser concluído a expensas da Santa Sé, após a morte do embaixador, e transferido, em 1886, para a Catedral de Viterbo, por decisão do Papa Leão XIII.

Diversas vicissitudes fizeram com que este segundo mausoléu ficasse encoberto numa capela lateral murada da catedral. Várias foram as tentativas – por parte de prelados italianos e portugueses – para conferir mais dignidade à memória de João XXI. Mas só no limiar do século XXI se faria plena justiça a este notável português.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

(In “O Olhanense”, de 15-08-2025)


6 de agosto de 2025

HÁ 519 ANOS PARA ALÉM DA TAPROBANA



 

Hoje conhecida por Sri Lanka, esta ilha situada a sudeste do subcontinente indiano era anteriormente designada por Ceilão, nome que manteve até 1972. Em cingalês, o nome da ilha significa “leão”. Há mais de 500 anos, os portugueses chegaram a este território, iniciando uma longa e complexa relação histórica.

Quase todos os portugueses conhecem as primeiras estrofes do Canto I, de Os Lusíadas:

As armas e os barões assinalados

Que da ocidental praia lusitana,

Por mares nunca de antes navegados

Passaram ainda além da Taprobana.

Ora, Taprobana era a designação que Plínio, no século I d. C., dava à “Ilha dos Leões” e que os navegadores portugueses, ao ali chegarem em 1506, passaram a chamar Ceilão – uma corruptela de Sailan ou Seyllan, nomes usados por mercadores árabes, chineses e italianos da Idade Média.

Origens e primeiros povos

Os registos mais antigos da história do atual Sri Lanka datam do século VI a.C., quando o povo cingalês (ou sinhala) migrou da região de Bengala, na Índia. Antes disso, a ilha era habitada por Vedas, de origem provavelmente malaia, cujos descendentes ainda vivem na parte leste da ilha.

Chegada dos portugueses

Em 1506, oito anos após a chegada de Vasco da Gama, D. Lourenço de Almeida desembarcou no Ceilão, então conhecido como “ilha da canela”, iniciando uma presença portuguesa que duraria cerca de 150 anos. Estabeleceu contactos com o rei de Kotte e iniciou a construção de uma fortaleza. No entanto, o vice-rei D. Francisco de Almeida (1505-1509), pai de D. Lourenço, era contra uma política de conquistas que implicasse grandes recursos humanos e financeiros. Assim, em 1519, a influência portuguesa em Colombo era quase nula, obrigando-os a continuar a comprar a canela a mercadores muçulmanos no Malabar.

Em 1512, António Real aconselhou D. Manuel a investir mais no comércio com as Maldivas e o Ceilão. Mas só em 1518, já no final do vice-reinado de Lopo Soares de Albergaria (1515-1518), se construiu a Fortaleza de Colombo. Mesmo assim, os portugueses nunca conseguiram obrigar o rei de Kotte a pagar regularmente o tributo imposto: 400 bahares de canela e dez elefantes. (Bahar era uma medida de peso variável no comércio do Índico.)

Em 1521, a fortaleza portuguesa foi cercada e abandonada três anos depois. Os portugueses esperavam que o recuo acalmasse os conflitos e garantisse o fornecimento de canela às naus do Reino.  

Os três reinos

No século XVI, o Ceilão era estratégico nas rotas comerciais do Índico, mas politicamente fragmentado. A ilha estava dividida em três reinos:

·       Kotte, no sudoeste, controlava o comércio da canela e foi o primeiro a estabelecer relações com os portugueses.

·       Kandy, no centro, era “reino das montanhas”, que viria a tornar-se aliado e depois inimigo dos portugueses.

·       Jaffna, no norte, era culturalmente ligado ao império hindu de Vijayanagar. Este último é a origem das tensões entre os Tâmeis do Norte e os descendentes dos outros dois reinos, que culminaram na guerra civil do Sri Lanka, séculos depois.

A fragmentação agravou-se em 1521, com a divisão do reino de Kotte e a criação do reino de Sitawala. Este novo reino, apoiado por Calecute, rival dos portugueses, empreendeu uma política expansionista contra Kotte e os seus aliados lusos, conseguindo conquistar Kotte em 1565 e reduzir a presença portuguesa à zona de Colombo.

Conflitos e domínio

Apesar dos revezes, os portugueses beneficiaram da política pró-lusa do rei de Kandy, desde 1550. Essa aliança visava conter Sitawaka. No entanto, em 1587-88, Colombo foi cercada por Sitawaka, numa resposta à cedência do reino de Kotte à Coroa portuguesa. Após resistirem ao cerco, os portugueses iniciaram uma ofensiva que, em sete anos, lhes deu o domínio efetivo da ilha – embora ainda com fortes resistências.

Ao contrário de outras colónias, os portugueses em Ceilão procuraram um domínio territorial e não apenas comercial, tentando implantar uma estrutura colonial baseada na terra. Mas o “reino das montanhas”, Kandy, tornou-se o principal opositor à conquista total da ilha.

A queda

A oposição permanente entre portugueses e cingaleses de Kandy impediu uma conquista completa. Em 1617, foi assinado um tratado de paz: Kandy reconhecia a soberania portuguesa sobre Kotte e comprometia-se a não se aliar aos holandeses, que, desde 1602, rondavam a ilha. Em troca, Portugal reconhecia o poder do rei de Kandy. Mas a paz foi breve.

Entre 1638 e 1658, os holandeses conquistaram todas as posições portuguesas. A presença lusa passou a ser apenas uma memória – mas uma memória viva: centenas de palavras portuguesas (como calça, saia, copo) permanecem no cingalês, assim como apelidos como Sousa, Coutinho ou Pereira, ainda comuns na atualidade.

DADOS ATUAIS DO SRI LANKA

Nome oficial: República Democrática Socialista de Sri Lanka.

Capital: Sri Jayawardenapura-Kotte (desde 1982), subúrbio da antiga capital Colombo.

Superfície: de 66.000 Km2.

População (2023): 22.04 milhões.

Grupos étnicos (2002):

·       Cingaleses: 74%

·       Tamiles: 18%

Línguas oficiais: Cingalês e Tamil

Religiões (2001):

·       Budismo: 69,1%

·       Islamismo: 7,6%

·       Hinduísmo: 7,1%

·       Cristianismo: 6,2%

Moeda: Rupia cingalesa

Regime: Parlamentar

Chefe de Estado: Presidente da República, eleito por seis anos.

 

João de Jesus Nunes

jjnunes6200@gmail.com

Fontes: Clube do Colecionador - junho 2004; Wikipédia

 

(In “O Olhanense”, de 01-08-2025)